É perder tempo jogar AD&D? (Sim, é. Mas com um twist.)


 


Muitas vezes me deparo com gente no hobby que diz que jogar AD&D é perder tempo. Que o jogo é muito complicado, que tem regra demais pra coisa de menos, que eu poderia estar me divertindo mais em vez de ficar decorando coisas triviais que eu posso meter um "ruling" e decidir na hora e seguir o jogo. 

E eu vou dizer, eles não estão errados. Pelo menos não no ponto de vista de alguém certamente cru no Olsdschool. Nos primeiros 4 anos tendo contato com OSR, eu também pensava exatamente assim. Eu queria um sistema simples (mas completo) fácil de ler, de executar e que trazia a experiência D&D. Eu gosto muito de LotFP e esse sistema me servia muito bem, mas não era tematicamente tão próximo de D&D. Daí saiu Oldschool Essentials em 2020 (eu já flertava com o B/X essentials antes) e eu  achei que tinha encontrado a nova maravilha do mundo. Nunca mais eu iria precisar de outro sistema pra jogar D&D. 

E os anos passaram. Eu joguei, mestrei, li diversos módulos. Muita porcaria OSR moderna, que apresentava uma ideia em imagens e frases curtas, formas de educar jogadores sobre crueldades do mundo real e como não repeti-las, mas que não disponibilizava o básico que era material jogável. Me deparei também com muito sistema que se dizia OSR mas tinha ainda menos conteúdo do que OSE, que é o mínimo essencial para se jogar D&D. 

Jogando, mestrando, lendo, conversando com pessoas mais próximas que tem os mesmos interesses do que eu (que é jogar D&D) notamos que, infelizmente, o OSE (B/X) falhava miseravelmente em questões essenciais do jogo (magias sem descrições necessárias para interpretação a longo prazo, monstros faltando detalhes necessários como recursos para combater jogadores poderosos, falta de material para lidar com a quantidade de ouro e items mágicos conquistados a longo prazo, e etc. Mais sobre isso e outros pontos no fim do post). Coisas que não ficam aparentes nos primeiros níveis, especialmente se você seguir de maneira leve e solta o que o Finch fala sobre rulings no Quickprimer. Dá pra ir levando, os buracos vão sendo tampados no dia a dia de jogo, você só torce para as mesmas coisas não aparecerem de novo. Mas elas aparecem e muito. Especialmente em campanhas mais longas. 

Daí você diz "Pô, vai lá e pega coisa útil de AD&D e ignora o resto, é tudo compatível mesmo". Claro gafanhoto, foi isso que fizemos. Fomos lá e consultamos o DMG, o PHB e até o MM. Aos poucos fomos catando regrinhas, adaptando, sempre que algo aparecia que não bastava o "rulings" para resolver.

Mas aí foram aparecendo buracos e mais buracos, cada vez maiores. Como essa magia cobre essa situação? Mete um rulings. Mas aí aparecia uma situação que esse ruling ou regra da casa quebrava o jogo mais para frente, gerava abuso, se os monstros usassem, os jogadores chiavam e etc. Daí pegávamos o AD&D para cobrir. E assim foi indo. Indo, até que ficou insustentável. A gente estava usando mais o DMG do que o OSE. O que então me fez tomar a terrível decisão: Vamos ter que "perder tempo" com AD&D1e.

E assim fizemos.

Com isso, paramos de perder tempo inventando rulings que prejudicam o jogo (mas obviamente não abdicamos dos que o Finch realmente prega no Quick Primer, esse é válido). Paramos de perder tempo procurando regra básica necessária a longo prazo em outro sistema. Paramos de construir um golem que no fim estava se tornando um AD&D piorado. Paramos de procurar respostas milagreiras de gurus do OSR (sim, tem gente que até paga para fazer cursos com eles). Resumidamente, paramos de tentar reinventar a roda. 

Existem vários sistemas OSR (sistemas de verdade, não golpe de artista metido a game designer)  E os melhores deles vão no AD&D1e procurar respostas. Alguns conseguem tirar bastante proveito, outros nem tantos. O Advanced OSE é um que não soube, por exemplo. Logo, se tantos gamedesigner de verdade, veteranos, vão nesse sistema "arcaico" se inspirar,  existe algo nesse tal de AD&D1e que compensa perder tempo, correto? 

Sim, existe. E eu hoje perco muito do meu tempo com esse sistema e com a prática de jogo que ele propõe. No início do texto eu falei sobre gente crua no oldschool achar que é perda de tempo pegar esse sistema. E eu concordo mesmo. Gente crua precisa gastar tempo com sistemas mais simples (mas eu hoje recomendo enormemente o S&W complete revised e nenhum outro) para aprender o básico do jogo, sua essência, sua prática e entender do que de fato se faz D&D. Daí, depois de um tempo jogando, mestrando e lendo, vai entender que chega um ponto que sua experiência e interesse demandam algo...avançado. (triste piada, mas feliz verdade)

Então, quando alguém vem te falar que AD&D é perda de tempo, leve em consideração que talvez essa pessoa só não está no ponto de jogar o jogo avançado. Talvez para ela, a diversão está no mudcore, no constante e desesperador fascínio pela altíssima letalidade, escassez de recursos básicos e desafios banais. E isso é ótimo. Eu também gosto desse estilo. Mas chega um ponto que enjoa e você quer mais. 

AD&D te oferece esse mais. Mas também exige mais. Você vai ter recursos amplos para além do Mudcore, para além de contar tochas e gerir ração. Para além de conseguir carregar esmola para fora da masmorra. Para além de ter que se enfiar em pântano imundo pra fugir de grupelhos de Gnolls. Aí, meu amigo, o jogo muda. Não, você não vai ficar super forte.

Sim, vai ficar poderoso para desafios mundanos, mas aí surgem os desafios de verdade. Os encontros ficam mais elaborados, exigem estratégias de sobreposição de poderes, de posicionamento (teatro da mente é para a mesinha de criança, no mesmo sentido que o B/X é um jogo voltado para os mais jovens. Adulto joga em mesa com grid, pois este exige um controle mais granular de terreno, abrindo um leque de opções para tomada de decisões mais complexas . Eu sei, pisei em calos.), de saber lidar com hordas de monstros fracos que juntos são poderosos, além de vampiros, liches, beholders e etc sem precisar correr para debaixo da saia narrativista do mestre. O risco nunca se tornou tão grande. Mas você vai ter recursos graúdos também. Magias completas e bem descritas, com aplicações complexas. Armas mágicas poderosas, mas que exigem atenção no uso. Habilidades que exigem esperteza e pensamento fora da caixa para serem aplicadas (mas dessa vez com necessidade de conhecimento das regras, não somente do bom senso)A coisa fica épica (mas não no sentido esdrúxulo do D&D da Hasbro, mas sim no sentido alto risco, alta recompensa, desafios complexos). Os personagens continuam tendo chance alta de morrer, mas dessa vez para desafios maiores, mais tenebrosos. E se morrer, correm risco de não conseguir voltar à vida, pois existe regras para evitar abuso de uso de magias poderosas. 

Claro, para ter essa experiência avançada, você vai ter que ler, investir seu tempo, separar quais regras vai querer usar (AD&D possui várias mecânicas modulares, você decide de antemão quais vai usar na sua campanha. Esse é o truque), vai preparar páginas de material para consulta rápida (só gente crua no oldschool fica consultando o livro toda hora, correto?). Com o tempo, no entanto, vai sentir o que de fato é o jogo avançado. Vai ter dificuldade, vai ter dúvidas aqui e acolá. Vai parecer que é coisa demais. Só que também não vai querer olhar para trás. AD&D1e não é um jogo fácil, mas é, sem dúvida, na opinião de veteranos, o D&D definitivo.  

Você pode discordar, ter preconceitos,  pode duvidar sem nem procurar saber mais, pode preferir sua campanha de 1 ano com uma colcha de retalhos e recursos narrativistas disfarçados de filosofia. E isso é super válido. Jogue o que gosta, do jeito que gosta com quem você gosta. Mas quem sabe um dia isso não muda? E se mudar, saiba que o AD&D está aí, insuperável, como o jogo avançado de D&D. Basta você querer "perder tempo" com ele. 


OBS: Me pediram exemplos do que cito acima, então segue aí alguns. Somado de links de outros textos que esclarecem muito mais do que eu sobre o que considerei acima:

Recomendo a leitura dos  textos do link abaixo para entender melhor sobre as peculiaridades do que escrevi no post. https://ratoatroz.blogspot.com/2024/11/curadoria-do-rato-para-leituras-do.html . Especialmente a parte sobre o CAG.

A título de exemplo, tudo abaixo é problemático a longo prazo no B/X e o AD&D corrige:

- Muitas magias no B/X não possuem limitações que se tornam abusos a longo prazo, como haste, o resurrection e etc.

- O fato de morrer com 0 de vida também atrapalha muito a longo prazo, por razões óbvias de letalidade, além do fato que não tem um buffer pros jogadores conseguirem salvar o personagem a tempo.

- Items mágicos não possuem valor em ouro e nem xp. Isso pesa muito mais adiante, pois jogadores começam a colecionar items e não conseguem nem xp por eles.

- Acúmulo de ouro. Com o tempo os jogadores vão precisar de montanhas de ouro para evoluir mas não vão ter aonde gastar.

- Monstros não possuem resistência a magia. chega um ponto que os personagens vão simplesmente passar em cima de tudo com êxito garantido, pois os monstros não terão truques suficientes para impedir o avanço dos personagens.

- Combate limitado. Não ter a granularidade de segmentos limita a chance de perder ou ganhar por apenas quem saca mais rápido e nada mais, especialmente pros usuários de magia.

Etc...etc.

Comentários

  1. AD&D é parte do OSR. Sempre foi.

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  2. Já esbarrei com muito elogio sobre a aplicação do AD&D 1ed na OSR, mas percebi muita dissidência sobre incluir o AD&D 2ed no estilo. Você teria alguma sugestão de conteúdo sobre o assunto? Pois a nostalgia me faz ter um carinho especial pela 2ed, mas não gostaria de "perder tempo" se for o caso de se tratar apenas de nostalgia mesmo e seria mais proveitoso explorar a 1ed.

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    1. Posso te indicar 2 textos, mas em inglês:

      https://beyondfomalhaut.blogspot.com/2022/10/blog-osr-module-o5-2e-is-still-not-old.html

      https://zherbuswrites.blogspot.com/2023/03/changes-from-ad-to-ad-2e.html

      O primeiro explica pq 2e não se encaixa no oldschool propriamente dito e o segundo mostra diretamente as diferenças técnicas.
      Se a língua não for problema, o OSRIC é um excelente retroclone da 1e em inglês e que é bem fácil de ler, especialmente se considerar que o esqueleto do sistema não mudou do 1e pro 2e. Se quiser saber mais, tem outros posts por aqui que tocam no assunto de retroclones ou indicam outros lugares também para leitura. Se usar discord, tem o servidor JACA que agrega tudo isso que falei e mais. link tá no topo da página inicial do blog.

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    2. Massa, valeu pelas indicações de texto, vou conferir!

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  3. Mano, o texto tá massa, de verdade, tem umas ideias muito bem colocadas. Só que, tipo, em alguns pontos, tua linguagem fica meio áspera. Isso acaba tirando um pouco do brilho da mensagem. Por exemplo, comparar teatro da mente com infantilidade... véi, desnecessário demais. Teatro da mente é uma parada muito da hora, deixa o jogo rápido, tá ligado? Não é menos maduro, só é outra vibe. Dá pra falar que jogar com miniatura tem mais detalhe, mais técnica e tal, mas sem invalidar o rolê criativo e subjetivo do teatro da mente, que é bem forte, inclusive.

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    1. Opa, obrigado por ler e comentar. Espero que tenha tirado proveito do texto apesar dos pontos que achou "áspero". Esse é só mais um estilo de escrita casual de vários outros que aparecem em blog. Eu gosto desse tom de conversa casual para escrever, justamente pelo fato de achar mais fácil assim e mais fluido, rendendo mais. Se eu ficar preocupado em escrever texto acadêmico em blog, preocupado se estão felizes ou tristes com o conteúdo, eu não escrevo é nada. Como blog é local de escrever opinião, estas são as minhas. Que bom que alguns gostam, considero isso um extra. Aos que odeiam, paciência. Só espero que produzam algo positivo com esse sentimento. Tipo ler mais e aprender com isso.

      Já sobre essa insistência nesse ponto de infantilXadulto que muitos estão tomando as dores no Reddit e você trouxe aqui. Esse foi o propósito da expressão, provocar. Mas não para ferir os sentimentos frágeis de alguns leitores. O intuito é provocar e fazer pensar ao mesmo tempo. Foi para chamar atenção à demanda que cada estilo traz ao jogo. O teatro da mente não se utiliza bem dos recursos que o jogo oferece. Posicionamento é algo extremamente importante no AD&D e a interpretação do "perto, long e distante" dos teatros da mente da vida não são suficientes. É possível jogar AD&D com teatro da mente? Sim, vai ser um D&D de qualidade? Não na parte de combate, infelizmente. Não estou dizendo também que é necessário tirar as miniaturas do bolso para qualquer encontro aleatório. Muitos se resolvem em um, dois rounds. Mas qualquer encontro mais elaborado, vai exigir uma visualização melhor, com distanciamento e posicionamento adequado. Essa é minha opinião sobre o tema, como tudo nesse blog

      Porém, o que muita gente não dá conta, especialmente vinda do Reddit, é de que quando você lê algo provocativo, você pensa a respeito, tenta entender os motivos que aquilo foi escrito e a partir daí promova discussões que agregam . Mas isso exige que as pessoas vão além da fragilidade emocional de se ofender por algo tão banal e se colocar no direito de agredir o interlocutor.

      Esse tipo de comportamento só reforça o ponto de que quem se ofendeu é porque no fim das contas "a carapuça serviu", como diz o ditado popular.

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