Campanha Sandbox em D&D Old School, o que levar em consideração? Um pontapé inicial.


Com o intuito de ajudar o iniciante a produzir uma campanha sandbox no estilo do D&D old school e por notar um excesso de desinformação e ruídos sobre o tema, decidi condensar nesse texto os elementos fundamentais, seguindo como referência os conselhos dos mestres Gabor Lux e Trent Smith em seus excelentes textos sobre o tema. Recomendo fortemente a leitura na íntegra desses textos linkados (1, 2 e 3), pois eles esmiúçam com maiores detalhes as pinceladas que dou aqui.

O objetivo principal de uma campanha sandbox é colocar a exploração e as escolhas dos jogadores no centro da aventura. Ao adotar esse estilo, o objetivo não é criar um caminho linear para os personagens, mas permitir que eles explorem um mundo rico em detalhes, onde suas decisões têm consequências duradouras. Para isso ser possível, precisamos abordar os principais elementos para criar uma campanha que incorpore todos os aspectos essenciais desse método, desde o design do mundo até a construção de masmorras e o uso de hexcrawl, com ênfase na criação de um jogo mais interativo e  flexível. 

1. Defina o Mundo de Forma Simples e Modular

No estilo sandbox, não é necessário construir um mundo gigante e hiper-detalhado desde o início. Comece com uma área pequena (por volta de 10x10 ou 12x12 hexes, em média) e expansível, como uma província, um baronato ou uma região de ermos. Divida essa área em hexágonos de 6 a 12 milhas, o que permitirá a exploração estratégica e a criação de uma experiência imersiva. Também é importante lembrar que não se preenche todos os hex com conteúdo à exaustão. Só se cria conteúdo em hex espaçadamente, para que seja possível estimular a exploração e não deixar os jogadores presos em um  parque de diversões nos arredores da vila inicial. O jogo é feito para se aventurar e explorar longas distâncias, não para passear e tirar fotos do campo em torno da vida rural inicial. O mapa do Mestre  deve conter uma variedade de terrenos e locais de interesse, como vilarejos, fortalezas, masmorras e ermos, enquanto os jogadores veem um mapa mais simples, com áreas desconhecidas que precisam ser exploradas (rumores, mapas do tesouro, características irregulares no horizonte, ajudam a estimular os jogadores a explorar). Isso permite que o mundo se revele de maneira orgânica, incentivando a curiosidade dos jogadores e as escolhas que definem a direção da campanha.

2. A Estrutura da Aventura e da Exploração

A grande vantagem de uma campanha sandbox é que ela não segue uma linha reta de narrativa. Ao contrário de um enredo fixo, o foco é em locais e eventos que podem ser visitados ou influenciados dependendo das escolhas dos jogadores. Crie masmorras e locais de aventura que os jogadores possam explorar a qualquer momento, com uma variedade de desafios e encontros. Cada masmorra ou área de exploração deve ser modular e dinâmica, com o ambiente reagindo de acordo com as ações dos jogadores. Por exemplo, se uma facção é derrotada, o mundo pode reagir com novas ameaças ou oportunidades, e o próprio design da masmorra deve mudar com o tempo, incluindo layout, monstros, facções, armadilhas e tesouros. É comum em campanhas que começam no espectro de aprendizagem (levels 1 a 3) que os personagens comecem  em uma área segura e civilizada, com recursos suficientes para sobreviverem (como um forte, uma vila) em que é possível explorar em volta sem maiores riscos. O mestre possibilita isso usando tabelas de encontros aleatórios mais brandas (para areas civilizadas) e uma dungeon para níveis iniciantes substancial para mapeamento e próxima (para os jogadores explorarem e aprenderem o básico do jogo). A partir do momento em que eles atingem esse nível básico de experiência, é recomendado que seja estimulado exploração mais ambiciosa, saindo dessa zona de conforto e possibilitando que a vida de aventureiro possa de fato começar. 

Locais de aventura podem ser tanto covis (com uma ambientação e layout plausível referente ao tipo de criatura que ele contém) quanto locais que envolvem algum desafio que não seja tão elaborado e expansivo quanto o de  uma masmorra. Esses ambientes costumam ter poucas salas (em torno de 10 a 20, a depender, talvez até menos) mas que possuem o suficiente para se ter o senso de exploração e descoberta. Além de alguma recompensa no final. Seja o clássico tesouro do monstro (definido pela tabela de tesouros de monstros de seu sistema de jogo predileto) ou até recompensas inusitadas, como partes da criatura para a venda, uma jazida valiosa de minério incrustada em uma caverna, um mapa do tesouro que aquele bandido guardava em seu baú secreto na sua sala de comando, uma pista para um enigma mais elaborado e etc.  Vilas, cidades e habitações diversas também podem ser locais memoráveis de aventura e possibilitam uma dinâmica diferenciada de procedimentos. São excelentes locais para uma jogabilidade mais investigativa, exploração em citycrawl por esconderijos e locais perdidos em meio a urbanização, invasão silenciosa de propriedade para fins escusos e até tramas políticas mais elaboradas.   

Já dentro das masmorras propriamente ditas, crie ambientes com múltiplos níveis, temas e acessos distintos. Por exemplo, um nível pode ser uma cripta corrompida por gosmas extraplanar decadente, o próximo pode ser um laboratório abandonado em que o dono brincou de ser deus e libertou uma criatura cósmica gosmenta no nosso plano e o seguinte pode levar a uma cidade perdida no submundo em que sua população se converteu em adoradores de criatura malignas de um plano de existência diferente . Esse tipo de variação e conectividade temática mantém o interesse dos jogadores e oferece desafios diferentes em cada nível. Mas muito importante: as masmorras devem ser construídas de forma a não serem lineares. Ao invés de uma série de corredores que levam diretamente à sala final, ofereça diversas rotas alternativas, atalhos e passagens secretas que podem ser descobertas, permitindo que os jogadores façam escolhas táticas durante sua exploração.

3. Escolhas e Consequências

Em uma campanha sandbox, as escolhas dos jogadores têm impacto direto e duradouro no mundo. Isso inclui desde as alianças que fazem com facções rivais até a forma como interagem com os habitantes de masmorras e outros NPCs. Lembre-se de que as masmorras podem ser habitadas por diferentes grupos ou facções, o que permite aos jogadores formar alianças, negociar ou até explorar dinâmicas sociais mais complexas. Um inimigo derrotado pode retornar com reforços, ou um aliado pode trair o grupo mais tarde. Essas interações devem ser parte integrante da narrativa e influenciar diretamente o desenvolvimento do mundo.

As ações dos jogadores não devem ser limitadas a simplesmente enfrentar monstros de maneira violenta; elas devem envolver negociações, escolhas morais e consequências que alteram o cenário. Se os jogadores decidirem destruir um templo profano ou roubar um artefato valioso, isso deve ter uma reação real, seja através da vinda de uma facção rival ou do desabamento de uma estrutura importante que afeta o equilíbrio da região.

4. Hexcrawls: A Jornada e a Exploração

Hexcrawls são uma excelente ferramenta para a exploração em ambientes selvagens e inexplorados. Cada hexágono no mapa representa uma área que pode ser visitada, e cada uma delas dá a possibilidade de conter desafios únicos, como encontros aleatórios, terrenos difíceis, mudanças climáticas ou novos locais para explorar. O mestre de jogo deve ter um mapa detalhado com todos os encontros possíveis, mas os jogadores têm acesso apenas a uma versão simplificada, com áreas misteriosas e desconhecidas à medida que viajam.

A exploração deve ser desafiadora e gratificante, com os jogadores tomando decisões estratégicas sobre como navegar no mundo. Ao utilizar hexcrawl, a jornada se torna um elemento de suspense, pois os jogadores nunca sabem exatamente o que irão encontrar em cada novo hexágono Ou se vão sequer encontrar qualquer coisa relevante ali, pois o mistério está em não saber se há algo adiante. E se houver, como identificar e descobrir como lidar com o desafio. Saber escolher em quais hex vai ter conteúdo é de extrema importância para  a qualidade da exploração e depende da astúcia do Mestre de jogo. Pois a partir do momento em que o Mestre fica ambicioso demais e  coloca coisas novas todos os hex do mapa, a sensação de suspense e mistério se esvai, pois os jogadores sempre vão saber que vai ter alguma coisa ali adiante, sem tempo de respirar e planejar de forma satisfatória. As escolhas táticas de onde ir e o que explorar devem ser tão importantes quanto os desafios que eles encontram, permitindo que a exploração seja uma parte central do jogo.

Quando o mestre de jogo coloca conteúdo em todos os hexágonos, vários problemas surgem. O primeiro já foi dito acima, acaba a sensação de mistério e descoberta. O segundo problema é que dificilmente os jogadores irão querer explorar pontos  mais distantes, pois gastam tempo excessivo na área inicial do jogo, pois sempre tem algo perto para fazer. O terceiro problema é que quando você dá de bandeja tanto conteúdo colado um no outro, o jogo que é para se aventurar, desbravar novas terras, se perde completamente, pois não vai haver perigo de faltar recursos, invadir áreas distantes e misteriosas, não vai ter o planejamento para dominar e produzir marcos seguros, a aventura vai ficar sempre "perto de casa". O quarto problemas, é que vai afetar o que os narrativistas do OSR moderno adoram, a tal verossimilhança. Faz sentido ter tanta coisa inexplorada perto de casa, sendo que se trata de uma área civilizada já tão explorada pela humanidade anteriormente? Então, não faz sentido. 

5. Design de Masmorras e Ambientação

As masmorras não são apenas labirintos de monstros, mas devem ter uma lógica interna que justifique sua existência. Se os jogadores entrarem em uma masmorra, ela deve ter história (em si mesma, a partir da exploração, não em loredump feito pelo mestre) e consistência, seja uma antiga cripta abandonada com uma tumba perdida de um semideus ou um complexo subterrâneo de facções em guerra pelos esporos inebriantes de um cogumelo gigante consciente que estimula a manutenção da guerra pois se alimenta dos pensamentos rancorosos do conflito e do sangue dos inocentes sacrificados pela banalidade de sua causa. As interações entre os habitantes dessas masmorras também devem ser dinâmicas. Por exemplo, se uma facção inimiga é derrotada, outras podem e devem tentar preencher o vácuo de poder, com o sem o auxílio dos PCs, ou os NPCs podem se voltar contra os jogadores durante o processo.

Além disso, a distribuição de monstros deve ser balanceada (sim, oldschool tem balanceamento, pense sobre isso). Masmorras não precisam estar saturadas de monstros; áreas vazias ou com encontros aleatórios também são importantes para criar momentos de descanso e exploração. Algumas áreas podem ser desocupadas, com apenas pistas ou armadilhas esperando para serem descobertas. Também é essencial que as criaturas e habitantes da masmorra possuam interações internas — alianças, rivalidades ou conflitos que podem ser explorados pelos jogadores para criar soluções ou complicações para os desafios que enfrentam.

6. Tesouros, Armadilhas e Enigmas

Tesouros e itens mágicos são fundamentais em qualquer campanha, mas devem ser bem distribuídos e ter seu acesso limitado por obstáculos que os jogadores precisam superar. Itens mágicos e artefatos poderosos devem ser conquistados por meio de desafios significativos, não dados gratuitamente (da mesma forma, xp é distribuído pelo tesouro recuperado e pelos monstros derrotados. Não se dá xp para o jogador por apenas existir, respirar e cumprir sua função básica de aventureiro que é a de explorar. Dar xp sem desafio, por apenas andar para frente e abrir um hex, é pedir para que ele fique mal acostumado e só ande a esmo sem planejar a exploração). O tesouro, além de ser uma recompensa importante, pois fornece possibilidade de expansão de níveis e recursos financeiros, deve ser protegido ou escondido de maneira lógica. Um mapa de tesouro pode ser uma excelente ferramenta para motivar a exploração, criando novos ganchos de aventura para os jogadores. 

Armadilhas e enigmas, por sua vez, devem ser projetados de forma inteligente, com lógica e propósito, não como obstáculos aleatórios. Por exemplo, uma fechadura deve ter uma chave, e a localização dessa chave deve ser pensada e aplicada no cenário. Armadilhas devem ser usadas para testar a astúcia dos jogadores, e enigmas podem ser parte integral da narrativa (mas não obstáculo da exploração central do ambiente) ou apenas curiosidades que levam à exploração de áreas secundárias. Certifique-se de que os jogadores possam usar suas habilidades de investigação e engenhosidade para resolver desafios e avançar, em vez de depender de sorte ou de resolução mecânica.

7. Adapte o Mundo em Tempo Real

A verdadeira beleza do método clássico de jogar D&D é sua flexibilidade e adaptação em tempo real. O mundo não é estático — ele muda de acordo com as ações dos jogadores. Se um grupo de aventureiros derrubar uma torre de comunicação alienígena importante,  destruindo um vilarejo de formigas venusianas no processo, isso pode ter repercussões mais amplas em outras áreas. Facções podem reagir, criaturas podem se mover, afetando o ecossistema no entorno ou novos eventos podem surgir como consequência das ações dos jogadores. O mundo deve ser dinâmico e capaz de se adaptar ao que acontece no jogo, criando uma sensação de que os jogadores estão moldando a realidade ao seu redor. E mesmo se os jogadores não interagirem com uma região, sua inação também afeta o mundo. Eventos se desenrolam e o mundo progride, mesmo sem a ação direta ou indireta dos jogadores. O mundo existe para além deles, não para seu entretenimento. Sempre tenha isso em mente. 

8. O Sistema de jogo e seus métodos são essenciais 

O Sistema de jogo e suas mecânicas são imprescindíveis na hora de colocar a campanha sandbox em prática. Nada do que está sendo dito aqui importa de verdade se você não seguir os procedimentos do sistema de maneira consistente. Tempo de exploração, distância viajada,  gasto de recursos (sejam mágicos ou apenas de consumo básico), limitar a progressão de nível ao ganho de XP a superação de desafios contra monstros e recuperação de tesouros,  precisam ser detalhadamente registrados. Uma jornada perigosa pode ser apenas viajar por dias por um campo e acabar morrendo de sede, de fome, de exaustão por ingenuidade na hora de planejar os recursos de viajem. Os personagens podem entrar em conflitos por carregarem peso para além do limite de seu deslocamento útil, monstros podem exigir pedágio só pela carga que observam os personagens carregarem, o momento que passam pelo seu domínio, a segurança da carga e etc. Um grupo que não calculou bem o vigor de seus animais de carga, pode ser vítima de emboscada em uma região que não planejavam ter que descansar, além de se depararem com um combate fácil em circunstâncias normais, mas que são derrotados por não terem planejado bem o repertório mágico de seu usuário de magia, o vigor de seu guerreiro, os milagres de seu clérigo ou as rações como isca para criaturas menores. Todas essas variáveis devem ser levadas em consideração na hora da exploração de um sandbox e seu peso depende das regras. Logo, a escolha do Sistema e a consistência na aplicação de seus procedimentos são essenciais para o proveito máximo da proposta sandbox. 

Já sobre procedimentos de criação de conteúdo sandbox em si, como o que colocar nos hexes e masmorras, o melhor e mais recomendado por mim ainda é o contido no DMG . Lá há o essencial para sair criando conteúdo de jogo com excelentes tabelas e procedimentos. Mas qualquer outro sistema completo de D&D oldschool também vai conter os procedimentos básicos necessários. 


9. Criatividade e Improviso

O método Clássico também valoriza a criatividade. O improviso é essencial para uma campanha de sucesso. Ao invés de planejar cada detalhe com antecedência, forneça as bases e permita que os jogadores explorem e criem suas próprias soluções. O mundo deve ser projetado para ser adaptável, e as melhores histórias surgem das interações espontâneas entre os jogadores e o cenário. Isso cria uma campanha que é tanto colaborativa (no sentido de que a ação dos jogadores afetam o mundo de jogo e a ação do Mestre provoca uma reação dos jogadores em jogo) quanto flexível, permitindo que o jogo se desenvolva de forma inesperada.  

Em resumo, criar uma campanha de D&D old school é um processo que foca em um mundo aberto e dinâmico, onde as escolhas dos jogadores têm consequências reais. A construção de hexcrawls e masmorras modulares, a interação entre facções e NPCs, a exploração e os desafios estratégicos são os pilares dessa abordagem. Ao permitir que os jogadores moldem o mundo e a história, e ao manter o jogo fluido e adaptável, você cria uma campanha rica, envolvente e com um senso real de agência.

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