Ferramentas de segurança e temas sensíveis em RPG de mesa: Para que serve e para quem são?
Lá vem pedrada...
DISCLAIMER: Texto não recomendado para pessoas com baixa maturidade emocional e/ou menores de idade
Nos últimos anos passamos a ter acesso a inúmeras ferramentas de "segurança" para uma mesa de RPG sensível e segura, com todos os aparatos necessários para manter a frágil psique dos jogadores livres de qualquer trauma profundo gerado pela narrativa insensível do mestre de jogo.
A preocupação com o bem estar de terceiros é memorável. E não machuca pensar sobre isso no contexto de RPG de mesa. Mas até que ponto devemos confiar nessas ferramentas e quando de fato é necessário usá-las? E isso sequer é preciso no fim das contas? Eu sou o advogado do diabo, logo, meu papel aqui é incomodar.
Anos atrás nas belas e aprofundadas discussões de Facebook (não), eu vi um post sobre ferramentas de segurança em RPG. Sobre como eram importante e tinham o intuito de salvar o hobby. Centenas de likes foram dados, pessoas nos comentários dizendo que era a coisa mais sensata a se fazer e outras dizendo que não precisavam disso e nunca mais foram vistas online depois disso. Mas tinha um herói sem capa (em tempos de caça às bruxas em que qualquer desvio de opinião abala as estruturas de uma sociedade digital dominada pela hipersensibilidade egoica dos terminalmente online (terminally online), não tem como chamar o sujeito de outra coisa. Talvez insano...talvez.) nos comentários que me abriu os olhos. Ele não só dizia que isso não era necessário, como reforçou seu ponto dizendo que não funcionava. Ousado ele. Quando questionado a fundo, ele falou que esse tipo de ferramenta servia mais para proteger o ego frágil do mestre e não o dos jogadores, que era uma ferramenta para retirar a responsabilidade do mestre de qualquer problema que surgisse em mesa depois, pois afinal "ele fez a parte dele em fazer a sessão 0, avisar dos riscos, usar a cartinha X e evitar 99% dos temas de horror pelo fato dos jogadores já terem vetado". Então, se algo acontecesse, já não seria problema dele. E isso me fez pensar.
Outro ponto levantado pelo sujeito foi que pessoas com transtornos graves, não serão salvas por cartinhas X, não serão protegidas dos temas sensíveis que serão apresentados nas mesas, não vão conseguir evitar traumas recebendo abraços na sessão zero e segurando a mão do coleguinha nos combates e perseguição imaginários narrados pelo mestre de mesa. Esse ego frágil vai precisar ser trabalhado em terapia, com profissionais qualificados, com medicação adequada prescrita após avaliação médica. E o mais importante de tudo, com a consciência de que viver em sociedade, interagindo com outras pessoas, exige resiliência e tolerância a frustrações. E isso me fez pensar mais.
Ele então fechou dizendo que RPGista não é profissional de saúde, que não sabe nada de Psicologia, Psiquiatria, Assistência Social. Mestre de RPG não é terapeuta, não é pastor, não é padre nem freira, não tem obrigação de saber técnicas de acolhimento de pessoa em surto. Isso é trabalho para profissionais capacitados. Que quem precisa de ajuda, deve procurar profissional competente, especializado em sua demanda. Que traumas são resolvidos em terapia. Não é fingindo que o problema não está lá que se resolve. Não é virando o rosto para qualquer tensão do dia a dia. É enfrentando o trauma em um espaço seguro de terapia, supera-lo com o auxilio do profissional. É um processo longo, árduo, mas necessário. É entender a ferida, curá-la e aprender com o sofrimento e a causa, para evitar repeti-lo. Não é mostrando uma cartinha vermelha quando algo dito em jogo te faz reviver uma vivência dolorosa, não é batendo na mesa e interrompendo a sessão porque te deu vontade de chorar que vai resolver seus conflitos internos. Varrer o lixo para debaixo do tapete, fingir que não está lá e punir quem só quer andar pela casa não vai resolver. Isso tudo que ele disse me fez refletir.
Quando um leigo se mete em área que não é capacitado, ele mais prejudica a pessoa necessitada do que ajuda (se pergunte quantos designers de RPG que desenvolvem esse tipo de ferramentas de fato tem qualquer capacitação para fazer isso. Se pergunte quantos consultores de sensibilidade tem de fato formação adequada para fazer esse tipo de consultoria ). Isso não quer dizer que devemos ser pessoas insensíveis aos problemas dos outros, não significa que como mestre eu vou ignorar os limites do jogador da mesa.
Mas isso não depende de ferramenta de segurança em RPG, isso depende é de habilidade social, de terapia em dia, de conseguir entender o básico das mensagens não verbais que as pessoas transmitem, ou saber ouvir quando a pessoa fala alguma coisa. Nenhuma ferramenta de RPG ensina isso. O que ensina isso é interação social. É parar de olhar pra si mesmo e começar a observar os outros. É perguntar se está tudo bem e saber ouvir se a pessoa falar que não está, e entender o porquê. Talvez aquela pessoa apenas não está bem para jogar com esse tema naquele momento, mas as outras estão. Talvez apenas ser gentil e falar para ela não jogar hoje e voltar no outro dia possa ser muito mais sensível do que estragar a diversão de todo mundo. E talvez os outros possam até trocar de jogo para aquela pessoa conseguir participar naquela ocasião, pois ela precisa de companhia naquele momento. Mas isso é uma decisão coletiva de momento, não é procedimento padrão ensinado em manual. Nenhuma ferramenta de RPG foi usada, apenas a habilidade de ser humano, de empatia, de compaixão.
Então, se esse tipo de ferramenta de sensibilidade não ajuda ao mestre nem ao jogador Para quem é afinal esse tipo de ferramenta?
A meu ver esse tipo de ferramenta, assim como vários outros sinais modernos de marketing, serve para agradar a um público que quer fazer o bem com o menor esforço possível. Querem se sentir bem comprando um livro que alega ter feito de tudo para proteger minorias, o ambiente, seu cachorrinho e seu ego consumista. São produtos que querem te fazer se sentir tão bem comprando seu material como se estivesse fazendo doação para criancinhas na África. E geralmente isso funciona, pois se não funcionasse, não estaria tanto em voga.
Daí você que está revoltadíssimo com o texto até então e diz que eu estou completamente errado, que vai me dar vários dislikes no Reddit e reclamar que meu texto é raso, sem confirmação científica e que seu gato teve uma úlcera só de ler o título, vira e me pergunta: "Seu Hitler sem bigode, profanador da pureza dos meus olhos virgens de todo mal, como então você lida com segurança em seus jogos?"
A resposta é simples, Mary Sue. E é exatamente o que você espera que seja, se leu tudo até então. Sua segurança emocional não é problema meu.
E é exatamente isso, não é. Meu papel é o de ser um Mestre de RPG, um jogador de RPG, um ser humano que vai ler o momento a momento das interações sociais com o grupo. Que vai conhecer cada um na mesa, vai entender com o tempo o que aquela pessoa tolera ou não e vai mandar ela ir beber uma água se estiver incomodada com o conteúdo exposto em jogo. Cada um é responsável pelos seus próprios limites e é de sua própria responsabilidade dizer sobre eles em voz alta caso estejam sendo ultrapassados. E se dizer não bastar, é comunicar e sair de perto da fonte, é prezar pela sua autopreservação. Você mesmo é seu primeiro mecanismo de defesa, use-o. Ninguém tem bola de cristal para adivinhar suas inseguranças, o que você demanda e nem é obrigado a satisfazer todo e qualquer capricho individual. Você precisa ser proativo e agir quando necessário.
Da mesma forma que eu vou ter de ter paciência caso eu me sinta desconfortável com algo, sua intensidade e se é razoável eu reclamar ou não sobre a situação. Muitas vezes nos sentimos mal por questões nada relacionadas com a situação do momento. Não é problema nem responsabilidade do outro nos fazer sentir bem 24 horas por dia. Cada pessoa já tem sua própria vida para viver em vez de ter que ficar carregando os outros no colo só porque não tiveram sobremesa hoje fazendo sua existência se tornar inconcebível. Bom senso é essencial. Precisamos recuperar nossos mecanismos de tolerância à frustração perdidos na era digital.
Mas veja bem, isso tudo é dito com foco em pessoas que tem discernimento, organização mental, estabilidade emocional e maturidade neurológica para se colocar no mundo como indivíduo e saber se relacionar com o outro. Crianças, adultos com deficiência intelectual diversas, neurodivergentes (os de verdade, diagnosticados por profissionais capacitados, não os de teste online sem fundamentação e aplicabilidade reconhecida pelos órgãos competentes em território nacional), esses sim precisam de atenção especial, de um cuidado maior na hora de conversar sobre qualquer coisa, não só sobre RPG de mesa.
Já a grande maioria das pessoas, as supostamente adultas e donas de si, essas não precisam de colo toda hora. Essas devem se responsabilizar pelas suas ações, pelas suas escolhas. Se você quer jogar um jogo de horror com tudo o que tem direito, dê seu jeito de aguentar a pressão. Se não quiser, se mudar de ideia, peça para sair, vai brincar de "my little pony" que dói menos. Tanto para você, quanto para as pessoas que querem se divertir sofrendo em uma mesa edgy, mas que não estão dispostas a ter seu pouco tempo de lazer disponível frustrado por alguém que não sabe decidir como quer passá-lo.
Daí você se pergunta: "Mas e eu que jogo online com estranhos, em eventos, e quero fazer uma mesa cheia de horrores inimagináveis e não sei se vou perder meu tempo?" Achei que nunca fosse perguntar.
No seu caso e em muitos outros em que você só quer jogar seu jogo e se divertir com pessoas que entendam seu propósito sem te cancelarem no twitter pela sua postura terrível de mestrar RPG que não agrade a elas, é bem simples. Faça um anúncio claro e conciso com o que pretende no jogo, temas gerais da proposta (sem dar spoiler) e a faixa etária mínima necessária. Converse antes da sessão com os interessados. Separe uns minutinhos e exponha seu estilo, sua proposta e o que pretende com o jogo. 10 minutos bastam. Em seguida, mais uns 10 minutos ouvindo a resposta dos interessados, saber se eles entenderam a proposta, se concordam, discordam. Se discordarem, avise a eles que a mesa não é para aquele perfil, ou talvez seja, se ele der uma chance a experimentar algo fora da sua zona de conforto. Já se sua mesa for online, pode ser adiantado aos interessados um breve questionário com um textinho introdutório (eu não gosto de questionário, mas tem gente que gosta). Isso pode parecer difícil de fazer, pois exige interação social, exige interesse na pessoa que está na sua frente. Interesse e esforço em entender que ela é um ser humano pensante e não um bloco inanimado que reage apenas a sua narrativa maravilhosa. Se esforce. Não substitua o contato humano por ferramentas frias, que não funcionam e ainda atrapalham. Quanto mais você treina na relação interpessoal, melhor você fica em entender o outro a nível subjetivo. Com o tempo você vai ser melhor que qualquer teste sem fundamento de livrinho de RPG politicamente correto.
E entenda sua mesa. O início pode ser o mais difícil, pois é o momento em que você tem que selecionar pessoas dispostas a sua proposta de jogo. Mas o trabalho não termina aí. O esforço é contínuo. Você precisa conhecer bem seus jogadores (seus interesses no jogo, não seus sonhos molhados inconscientes). Você precisa entender bem seus jogadores para, por exemplo, apresentar temas sensíveis em mesa e em qual intensidade. Se os jogadores são adultos e entendem sua proposta, não há limites. Você pode colocar o que achar necessário, da forma que achar necessário. Mas se for pessoas com maturidade emocional fragilizada ou ainda imaturas (seja por idade cronológica ou qualquer outro motivo) você vai ter que ter consciência disso e saber limitar no caso a caso. Faz parecer nesses casos que você precisaria de algum auxílio externo, como as ditas "ferramentas". Mas não, basta fazer o que foi dito acima que você pega o jeito. Se você sabe ser humano, civilizado e tem vínculo com outros humanos, você vai perceber o necessário e aplicar na mesa.
E ninguém é perfeito. Você vai errar, assim como jogadores também vão. Mas isso é inevitável. O pacto social não dito é de duas vias. Se você errou e percebeu, retifique-se, avise aos jogadores do erro, aprenda com eles. Caso você errou e não percebeu, cabe aos jogadores levantarem o ponto e darem feedback. E cabe especialmente a você saber filtrar esse feedback, pois muitas vezes as pessoas dão feedback ruim também. Uma coisa é certa, fingir que nada aconteceu e ir chorar no reddit depois dizendo que seu mestre/jogador é uma pessoa terrível, não é a resposta. Seja civilizado. Seja bom mestre. Seja bom jogador. Seja um ser humano. Não existe cartinha X que substitua o bom senso.
Bons jogos.
DISCLAIMER: Texto não recomendado para pessoas com baixa maturidade emocional e/ou menores de idade
Nos últimos anos passamos a ter acesso a inúmeras ferramentas de "segurança" para uma mesa de RPG sensível e segura, com todos os aparatos necessários para manter a frágil psique dos jogadores livres de qualquer trauma profundo gerado pela narrativa insensível do mestre de jogo.
A preocupação com o bem estar de terceiros é memorável. E não machuca pensar sobre isso no contexto de RPG de mesa. Mas até que ponto devemos confiar nessas ferramentas e quando de fato é necessário usá-las? E isso sequer é preciso no fim das contas? Eu sou o advogado do diabo, logo, meu papel aqui é incomodar.
Anos atrás nas belas e aprofundadas discussões de Facebook (não), eu vi um post sobre ferramentas de segurança em RPG. Sobre como eram importante e tinham o intuito de salvar o hobby. Centenas de likes foram dados, pessoas nos comentários dizendo que era a coisa mais sensata a se fazer e outras dizendo que não precisavam disso e nunca mais foram vistas online depois disso. Mas tinha um herói sem capa (em tempos de caça às bruxas em que qualquer desvio de opinião abala as estruturas de uma sociedade digital dominada pela hipersensibilidade egoica dos terminalmente online (terminally online), não tem como chamar o sujeito de outra coisa. Talvez insano...talvez.) nos comentários que me abriu os olhos. Ele não só dizia que isso não era necessário, como reforçou seu ponto dizendo que não funcionava. Ousado ele. Quando questionado a fundo, ele falou que esse tipo de ferramenta servia mais para proteger o ego frágil do mestre e não o dos jogadores, que era uma ferramenta para retirar a responsabilidade do mestre de qualquer problema que surgisse em mesa depois, pois afinal "ele fez a parte dele em fazer a sessão 0, avisar dos riscos, usar a cartinha X e evitar 99% dos temas de horror pelo fato dos jogadores já terem vetado". Então, se algo acontecesse, já não seria problema dele. E isso me fez pensar.
Outro ponto levantado pelo sujeito foi que pessoas com transtornos graves, não serão salvas por cartinhas X, não serão protegidas dos temas sensíveis que serão apresentados nas mesas, não vão conseguir evitar traumas recebendo abraços na sessão zero e segurando a mão do coleguinha nos combates e perseguição imaginários narrados pelo mestre de mesa. Esse ego frágil vai precisar ser trabalhado em terapia, com profissionais qualificados, com medicação adequada prescrita após avaliação médica. E o mais importante de tudo, com a consciência de que viver em sociedade, interagindo com outras pessoas, exige resiliência e tolerância a frustrações. E isso me fez pensar mais.
Ele então fechou dizendo que RPGista não é profissional de saúde, que não sabe nada de Psicologia, Psiquiatria, Assistência Social. Mestre de RPG não é terapeuta, não é pastor, não é padre nem freira, não tem obrigação de saber técnicas de acolhimento de pessoa em surto. Isso é trabalho para profissionais capacitados. Que quem precisa de ajuda, deve procurar profissional competente, especializado em sua demanda. Que traumas são resolvidos em terapia. Não é fingindo que o problema não está lá que se resolve. Não é virando o rosto para qualquer tensão do dia a dia. É enfrentando o trauma em um espaço seguro de terapia, supera-lo com o auxilio do profissional. É um processo longo, árduo, mas necessário. É entender a ferida, curá-la e aprender com o sofrimento e a causa, para evitar repeti-lo. Não é mostrando uma cartinha vermelha quando algo dito em jogo te faz reviver uma vivência dolorosa, não é batendo na mesa e interrompendo a sessão porque te deu vontade de chorar que vai resolver seus conflitos internos. Varrer o lixo para debaixo do tapete, fingir que não está lá e punir quem só quer andar pela casa não vai resolver. Isso tudo que ele disse me fez refletir.
Quando um leigo se mete em área que não é capacitado, ele mais prejudica a pessoa necessitada do que ajuda (se pergunte quantos designers de RPG que desenvolvem esse tipo de ferramentas de fato tem qualquer capacitação para fazer isso. Se pergunte quantos consultores de sensibilidade tem de fato formação adequada para fazer esse tipo de consultoria ). Isso não quer dizer que devemos ser pessoas insensíveis aos problemas dos outros, não significa que como mestre eu vou ignorar os limites do jogador da mesa.
Mas isso não depende de ferramenta de segurança em RPG, isso depende é de habilidade social, de terapia em dia, de conseguir entender o básico das mensagens não verbais que as pessoas transmitem, ou saber ouvir quando a pessoa fala alguma coisa. Nenhuma ferramenta de RPG ensina isso. O que ensina isso é interação social. É parar de olhar pra si mesmo e começar a observar os outros. É perguntar se está tudo bem e saber ouvir se a pessoa falar que não está, e entender o porquê. Talvez aquela pessoa apenas não está bem para jogar com esse tema naquele momento, mas as outras estão. Talvez apenas ser gentil e falar para ela não jogar hoje e voltar no outro dia possa ser muito mais sensível do que estragar a diversão de todo mundo. E talvez os outros possam até trocar de jogo para aquela pessoa conseguir participar naquela ocasião, pois ela precisa de companhia naquele momento. Mas isso é uma decisão coletiva de momento, não é procedimento padrão ensinado em manual. Nenhuma ferramenta de RPG foi usada, apenas a habilidade de ser humano, de empatia, de compaixão.
Então, se esse tipo de ferramenta de sensibilidade não ajuda ao mestre nem ao jogador Para quem é afinal esse tipo de ferramenta?
A meu ver esse tipo de ferramenta, assim como vários outros sinais modernos de marketing, serve para agradar a um público que quer fazer o bem com o menor esforço possível. Querem se sentir bem comprando um livro que alega ter feito de tudo para proteger minorias, o ambiente, seu cachorrinho e seu ego consumista. São produtos que querem te fazer se sentir tão bem comprando seu material como se estivesse fazendo doação para criancinhas na África. E geralmente isso funciona, pois se não funcionasse, não estaria tanto em voga.
Daí você que está revoltadíssimo com o texto até então e diz que eu estou completamente errado, que vai me dar vários dislikes no Reddit e reclamar que meu texto é raso, sem confirmação científica e que seu gato teve uma úlcera só de ler o título, vira e me pergunta: "Seu Hitler sem bigode, profanador da pureza dos meus olhos virgens de todo mal, como então você lida com segurança em seus jogos?"
A resposta é simples, Mary Sue. E é exatamente o que você espera que seja, se leu tudo até então. Sua segurança emocional não é problema meu.
E é exatamente isso, não é. Meu papel é o de ser um Mestre de RPG, um jogador de RPG, um ser humano que vai ler o momento a momento das interações sociais com o grupo. Que vai conhecer cada um na mesa, vai entender com o tempo o que aquela pessoa tolera ou não e vai mandar ela ir beber uma água se estiver incomodada com o conteúdo exposto em jogo. Cada um é responsável pelos seus próprios limites e é de sua própria responsabilidade dizer sobre eles em voz alta caso estejam sendo ultrapassados. E se dizer não bastar, é comunicar e sair de perto da fonte, é prezar pela sua autopreservação. Você mesmo é seu primeiro mecanismo de defesa, use-o. Ninguém tem bola de cristal para adivinhar suas inseguranças, o que você demanda e nem é obrigado a satisfazer todo e qualquer capricho individual. Você precisa ser proativo e agir quando necessário.
Da mesma forma que eu vou ter de ter paciência caso eu me sinta desconfortável com algo, sua intensidade e se é razoável eu reclamar ou não sobre a situação. Muitas vezes nos sentimos mal por questões nada relacionadas com a situação do momento. Não é problema nem responsabilidade do outro nos fazer sentir bem 24 horas por dia. Cada pessoa já tem sua própria vida para viver em vez de ter que ficar carregando os outros no colo só porque não tiveram sobremesa hoje fazendo sua existência se tornar inconcebível. Bom senso é essencial. Precisamos recuperar nossos mecanismos de tolerância à frustração perdidos na era digital.
Mas veja bem, isso tudo é dito com foco em pessoas que tem discernimento, organização mental, estabilidade emocional e maturidade neurológica para se colocar no mundo como indivíduo e saber se relacionar com o outro. Crianças, adultos com deficiência intelectual diversas, neurodivergentes (os de verdade, diagnosticados por profissionais capacitados, não os de teste online sem fundamentação e aplicabilidade reconhecida pelos órgãos competentes em território nacional), esses sim precisam de atenção especial, de um cuidado maior na hora de conversar sobre qualquer coisa, não só sobre RPG de mesa.
Já a grande maioria das pessoas, as supostamente adultas e donas de si, essas não precisam de colo toda hora. Essas devem se responsabilizar pelas suas ações, pelas suas escolhas. Se você quer jogar um jogo de horror com tudo o que tem direito, dê seu jeito de aguentar a pressão. Se não quiser, se mudar de ideia, peça para sair, vai brincar de "my little pony" que dói menos. Tanto para você, quanto para as pessoas que querem se divertir sofrendo em uma mesa edgy, mas que não estão dispostas a ter seu pouco tempo de lazer disponível frustrado por alguém que não sabe decidir como quer passá-lo.
Daí você se pergunta: "Mas e eu que jogo online com estranhos, em eventos, e quero fazer uma mesa cheia de horrores inimagináveis e não sei se vou perder meu tempo?" Achei que nunca fosse perguntar.
No seu caso e em muitos outros em que você só quer jogar seu jogo e se divertir com pessoas que entendam seu propósito sem te cancelarem no twitter pela sua postura terrível de mestrar RPG que não agrade a elas, é bem simples. Faça um anúncio claro e conciso com o que pretende no jogo, temas gerais da proposta (sem dar spoiler) e a faixa etária mínima necessária. Converse antes da sessão com os interessados. Separe uns minutinhos e exponha seu estilo, sua proposta e o que pretende com o jogo. 10 minutos bastam. Em seguida, mais uns 10 minutos ouvindo a resposta dos interessados, saber se eles entenderam a proposta, se concordam, discordam. Se discordarem, avise a eles que a mesa não é para aquele perfil, ou talvez seja, se ele der uma chance a experimentar algo fora da sua zona de conforto. Já se sua mesa for online, pode ser adiantado aos interessados um breve questionário com um textinho introdutório (eu não gosto de questionário, mas tem gente que gosta). Isso pode parecer difícil de fazer, pois exige interação social, exige interesse na pessoa que está na sua frente. Interesse e esforço em entender que ela é um ser humano pensante e não um bloco inanimado que reage apenas a sua narrativa maravilhosa. Se esforce. Não substitua o contato humano por ferramentas frias, que não funcionam e ainda atrapalham. Quanto mais você treina na relação interpessoal, melhor você fica em entender o outro a nível subjetivo. Com o tempo você vai ser melhor que qualquer teste sem fundamento de livrinho de RPG politicamente correto.
E entenda sua mesa. O início pode ser o mais difícil, pois é o momento em que você tem que selecionar pessoas dispostas a sua proposta de jogo. Mas o trabalho não termina aí. O esforço é contínuo. Você precisa conhecer bem seus jogadores (seus interesses no jogo, não seus sonhos molhados inconscientes). Você precisa entender bem seus jogadores para, por exemplo, apresentar temas sensíveis em mesa e em qual intensidade. Se os jogadores são adultos e entendem sua proposta, não há limites. Você pode colocar o que achar necessário, da forma que achar necessário. Mas se for pessoas com maturidade emocional fragilizada ou ainda imaturas (seja por idade cronológica ou qualquer outro motivo) você vai ter que ter consciência disso e saber limitar no caso a caso. Faz parecer nesses casos que você precisaria de algum auxílio externo, como as ditas "ferramentas". Mas não, basta fazer o que foi dito acima que você pega o jeito. Se você sabe ser humano, civilizado e tem vínculo com outros humanos, você vai perceber o necessário e aplicar na mesa.
E ninguém é perfeito. Você vai errar, assim como jogadores também vão. Mas isso é inevitável. O pacto social não dito é de duas vias. Se você errou e percebeu, retifique-se, avise aos jogadores do erro, aprenda com eles. Caso você errou e não percebeu, cabe aos jogadores levantarem o ponto e darem feedback. E cabe especialmente a você saber filtrar esse feedback, pois muitas vezes as pessoas dão feedback ruim também. Uma coisa é certa, fingir que nada aconteceu e ir chorar no reddit depois dizendo que seu mestre/jogador é uma pessoa terrível, não é a resposta. Seja civilizado. Seja bom mestre. Seja bom jogador. Seja um ser humano. Não existe cartinha X que substitua o bom senso.
Bons jogos.
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