Zona de conforto: O que diabos um boteco tem a ver com D&D?

 




Quando eu era adolescente tinha um boteco no centro da cidade que era ótimo. A galera ia lá se encontrar, trocar ideia, beber, fumar, arranhar uma viola e gritar. Era o paraíso juvenil. Todos eram iguais na mesa do bar, todos eram igualmente (e exageradamente) zoados. Ninguém era especial. Raramente havia brigas de fato, e quando tinha, era de alguém que não frequentava o boteco mas chegava lá impondo suas exigências em um ambiente que simplesmente não era feito pra ele. Então a pessoa esbravejava, batia a mão na mesa, reclamava com o dono, chorava, mas no fim ia embora. Enquanto isso os frequentadores gargalhavam até chorar, pois estavam em um ambiente seguro, que conheciam, que confiavam. 

Era o típico ambiente copo sujo. O dono não ficava rico, mas pagava as contas. O investimento no local era mínimo, as mesas enferrujadas, os cantos sujos com crostas de poeira, graxa (provavelmente da oficina de motos que havia no local anteriormente) e sabe-se lá mais o que. Ele basicamente só gastava com a bebida que vendia. Por um período até tentou vender umas porções de petiscos, mas não vingou. Era preciso alguém para cozinhar e lavar os pratos, além de chamar atenção da vigilância sanitária. Ele não iria fazer isso e a família dele não gostava de ir lá. Era um boteco nicho (ou lixo, dependendo para quem perguntasse). Mas para nossa galera, como disse, era o paraíso. 

Daí se passaram uns anos e o dono ficou doente, nada grave, mas a idade já começava a sentir nos ossos. A filha mais velha veio ajudar no trabalho, por alguns meses ela ficou lá sozinha. Começou a limpar o local, a controlar o que podia ou não ser dito lá dentro e quando era hora da gente ir embora porque estava tarde e ela não queria mais gritaria. Foi um período difícil.

Passaram alguns meses e o dono voltou. Mas o local já não parecia mais a mesma coisa. E assim ficou. Agora limpo, asseado de tudo. Muita gente deixou de frequentar. Alguns insistiram. Mas a maior parte dispersou. Achamos que o boteco iria fechar. Mas a filha dele insistiu, começou a vender salgados. Uma escola havia sido aberta ali perto, então todo dia tinha criança, pais ou professores comprando o salgado. O local ficou irreconhecível. Parou de vender bebida, vendia salgados, picolés e sucos. A única coisa reconhecível ali era o dono, que continuava na porta sentado fumando cigarro. 

Eu e meus amigos, depois de reclamar aos quatro ventos que a filha do dono era uma megera, que nos tinha tirado o paraíso e etc, passamos a nos reunir na praça da cidade. Bebida, carteado, fumaça. Tudo continuou igual. O ruim é que os bancos não tinham encosto e quando chovia não dava para ficar lá. (no boteco também tinha goteira, então era quase a mesma coisa) Daí a polícia chegava na alta madrugada e mandava a gente ir embora. E a  gente ia, claro. Éramos edgy, mas não imbecis.

Depois de um tempo um outro amigo abriu um boteco em uma garagem que usava antes para ensaio de sua bandinha fajuta de metal. O lugar era menor, não tinha janela e tinha um cheiro muito esquisito, mas a galera passou para lá e  por alguns anos ali foi nosso point até que a vida seguisse seu curso. E No fim nem lembrava-nos mais porque achamos tão ruim de sair daquele boteco. Acho que era o hábito mesmo. A gente acostuma muito fácil aos ares de nossa própria zona de conforto. 

Mas aí você se pergunta: "Pra que eu li essa fanfic de adolescente frustrado sendo que eu vim ler sobre RPG e choradeira adjacente?"

Exato. 

Essa história nada mais é do que um paralelo sobre o que acontece com D&D a cada edição. Quem tá a tempo suficiente no hobby entende esses tempos de crise. E hoje com a guerra cultural à toda, tudo parece mais intenso. Mas na verdade é tudo a mesma coisa. De novo e de novo. É sempre a mesma coisa. A marca muda de mãos, muda o foco, muda o público. Tenta se renovar (cada vez com uma desculpa diferente) para tentar agregar um público maior gerar mais riqueza pra satisfazer seus investidores. Toda empresa é assim. Desde o início dos tempos. Especialmente quando muda de mãos. Nada é para sempre. 

Tolo é aquele que acha que a empresa o entende, que o ouve, que se importa com o que ele pensa e quer. Consumidor é um número apenas. Ninguém liga para o que você gosta, pensa ou faz. Ligam para o consumo (e para sua choradeira online sobre o tema para gerar movimento no algoritmo). Nada mais importa. O discurso da empresa vai mudar de acordo com o que seus analistas acham sobre o público que tem potencial gerar mais lucro. A WOTC é um exemplo claro disso. Eles não se importam com você. Nunca se importaram. Nem a TSR se importava. Se você parar para analisar a história dela, você percebe isso claramente. Nem o Gygax se importava. Pergunta pra Hollywood com o que ele mais se importava na década de 80 que você vai entender. Pergunta pra família do Gygax se eles se importam tanto com o hobby assim. Tinha briga até ontem sobre o que fazer com as anotações do Gygax nunca antes publicada. Se amassem tanto o hobby assim, liberavam para a comunidade (parece que atualmente fizeram um acordo com a trolllordgames para algumas publicações) 

O ponto é, ninguém liga tanto para a marca e para o hobby do que seus fãs. Mas hoje D&D tá tão enraizado em tantos grupos diferentes que a marca significa uma coisa diferente para cada um. Ou absolutamente nada relacionado ao jogo original. Para uns é só grife e lifestyle, para outros é aquele mundo de fantasia mágico e maravilhoso que independe do sistema, para ainda outros é um jogo tático e para mais uns é um jogo de exploração. E isso é normal. Eu vejo gente que começou a jogar RPG a 5 anos e está super revoltada com o que D&D virou hoje. É algo para ficar impressionado. Para mim está exatamente igual ao que era a mais de 10 anos atrás. E antes disso, a 20 anos, não era nada bom também. E a 30? Já tinha virado algo que não valia à pena investir. Bom mesmo era a 40 ou mais. Mas isso é uma opinião pessoal que a Hasbro não está nem aí. E você também não deveria se importar. 

D&D é importante para você de forma diferente que é para os outros. Eu já entendo isso faz tempo. Se a dona dos direitos da marca quer fazer o jogo para um público novo que prefere fazer chá e falar de misticismo político em vez de explorar ermos e cavernas, bom para eles. Eu prefiro o meu D&D copo sujo. E não me importo se a filha do dono transformou em lanchonete ou casa de sucos. Meu jogo ainda vai ser jogado na praça, na garagem ou até na casa do vizinho. Porque é meu jogo e minha experiência com ele que importa. Eu não preciso do selo de aprovação da equipe de designer da moda ou de marketing da WOTC para me dizer que estou jogando D&D. Eu continuo jogando, mesmo usando outro nome. Porque é isso que importa para mim e o jogo que importa para mim ainda existe. Tenho com quem jogar e que compartilha da mesma disposição que eu. É isso que importa. O resto é papo furado que só favorece quem quer que a marca continue sendo propagada para enriquecer acionista que pouco se importa com o que ela representava ou sequer sabe o que diabos é RPG. 

Mas é claro. Eu dou total apoio aos desenvolvedores originais e aqueles que os tem apreço em defende-los quando são atacados online pelos detentores da marca por estratégia de marketing. Tem momentos que não tem mais o que fazer. Mas é preciso ter clareza que se defender não é o mesmo que atacar. É preciso ter clareza e esclarecer. Se falaram alguma mentira, desminta. Apenas desminta. Eternizar o ciclo vicioso de que o jogo virou isso e aquilo não vai ajudar quem precisa. Vai só favorecer os algozes do jogo. Pense bem e invista no que importa. Jogar o jogo e propagar seu estilo preferido. Ignore o resto, pois é ruído. 


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