Level Drain e Save Vs Poison/Death em D&D Oldschool (e até Systemshock em AD&D1e)
Das diversas mecânicas de D&D oldschool que a galerinha moderna parece não conseguir entender de maneira alguma é o tal do level drain e save vs poison/death. O que mais se vê é jogador chateado de que perdeu seu bonequinho usando de argumentos como "Mas é injusto morrer do nada com uma rolagem só", "Level drain me faz chorar no banho e querer parar de jogar", "Não é nada divertido me frustrar tanto perdendo progresso".
Sim, eu não nego que perder progresso não é legal, que perder meu bonequinho perfumado nível 5 contra uma aranha boba e feia e ser drenado até o level 1 por uma wraith me faz querer reclamar muito no bluesky. Mas depois de uns 5 minutinhos de luto, eu lembro que sou adulto e que jogo um jogo de riscos justamente por não ter mais a ilusão infantil de sucesso sem esforço e imutabilidade do status quo porque eu não dou conta de me adaptar às adversidades.
Precisamos lembrar que, como jogadores oldschool de D&D, não estamos procurando mecânicas e facilidades do D&D moderno (senão o estaríamos jogando felizes como "es bonequinhes" das artes modernosas e felizes da versão 2024 do jogo ). Nós queremos algo diferenciado, desafiante, que nos prenda a atenção e nos faça querer voltar para jogar mais, superar novos desafios e nos tornarmos mais espertos para não cairmos de novo e de novo na mesma armadilha.
O jogo não promete justiça, promete consequência. A justiça vem da imparcialidade da regra, não da proteção do jogador. Se você vai peitar um vampiro, deve entender que ele é um lorde undead e que há consequências desastrosas ao grupo por ser ousado assim. Deve se preparar, deve saber fugir quando a ameaça é grande demais e deve ser esperto e saber se adaptar. A resposta emocional intensa é parte do jogo.
Nem todo momento do jogo precisa ser “divertido”. D&D oldschool é sobre experiência dramática, superação de desafios, escolha e consequência e narrativa emergente, não sobre “fanfic do meu heroizinho intocável”.
Uma das maiores qualidades do D&D oldschool está justamente nessas mecânicas que muitos jogadores modernos consideram injustas, punitivas ou até cruéis. E é impressionante que até hoje no meio do suposto OSR e derivados esse tipo de coisa óbvia ainda gere debates intensos: O level drain e o save contra veneno ou morte costumam ser as mecânicas mais rejeitadas nas discussões dos oldschoolers de passagem . Adoram pregar que seguem a filosofia oldschool, que são tão legais quanto os velhos caquéticos e retrógrados da velha escola, mas frequentemente adoram suavizar ou remover essas mecânicas de seus jogos, assim como as "odiadas" edições "modernas". Que Gygax abençoe os retroclones, pois eles são ainda fundamentais para evocar a tensão, o medo e o respeito pelo mundo do jogo. E é justamente por isso que essas mecânicas merecem ser defendidas.
O level drain, a famigerada drenagem de nível, costuma ser encarado como uma penalidade extrema. Ao dar uma alisada ou um chupão no personagem, certas criaturas mortas-vivas, como espectros, wights e vampiros, drenam seus níveis de experiência, reduzindo diretamente suas habilidades e níveis, levando consigo seu progresso conquistado ao longo de sessões. A perda é real. Você vai ficar triste. Isso é o objetivo. Te fazer refletir sobre suas decisões. Aí que está o valor dessa mecânica: ela cria um tipo de medo que nenhuma outra regra consegue replicar. O simples fato de saber que um toque de um morto-vivo pode apagar meses de avanço coloca os jogadores em estado de alerta, tensão e criatividade emergente. Encontros com essas criaturas não viram apenas rolagem de dados e descrições estilosas de voadora usando plate armor; tornam-se eventos marcantes na campanha. Os jogadores pensam dez vezes antes de abrir um sarcófago, antes de explorar uma cripta escura, antes de avançar sem saber o que há no próximo corredor, antes de decidir quem colocar na linha de frente na hora da exploração. E isso é exatamente o que o jogo quer provocar: uma relação com o mundo que vai além do poder do personagem na ficha e tem a função tirar a segurança de progressão de nível sem surpresas.
Mais do que isso, o level drain recompensa os que jogam com inteligência. Aqueles que contratam ajudantes, clérigos, que compram água benta, que se posicionam taticamente, que preparam armadilhas, que usam o layout da masmorra em seu favor, que buscam informação antes de explorar, que evitam confrontos desnecessários ou que preparam defesas específicas estão jogando de acordo com o espírito oldschool do D&D. O jogo não se baseia em equilíbrio matemático, mas em risco vs recompensa. Além disso, essa mecânica serve como uma ferramenta sutil de ajuste de poder. Um personagem que disparou à frente dos demais em níveis pode ser trazido de volta ao grupo de maneira natural, sem precisar de house rules (ou rulings forçados por intervenções do mestre). E por fim, o level drain reforça o tom mitológico e sombrio do cenário: esses mortos-vivos não causam só dano, eles literalmente roubam parte da alma, o que é mais coerente com a mitologia clássica do que um simples ataque físico. Além de gerar aquela sessão de horror sem nenhum esforço preparatório especial.
Da mesma forma, os saves contra veneno ou morte instantânea, normalmente resumidos como "salvou, vive; falhou, morreu", são frequentemente mal interpretados por novos jogadores, ou especialistas de 1 semana de hobby. True oldschoolers que jogavam só 5e ano passado. As mecânicas de morte súbita (seja vs veneno em D&D, ou Systemshock em AD&D1e ) são, na verdade, o coração pulsante de um mundo onde qualquer erro pode custar muito caro. Essa rolagem introduz uma camada de tensão constante. Um personagem pode morrer ao abrir um baú envenenado, ao pisar em uma armadilha, ao encarar o olhar de uma criatura maligna e até mesmo ao tentar resistir a uma mudança fisiológica de uma poção que altera seu tamanho e/ou forma. E é exatamente isso que torna o jogo vivo: a possibilidade real de fim prematuro daquele boneco cultivado "diegeticamente" para ser o paladino salvador da pátria amada, idolatrada, "redundante" . Em vez de criar um jogo onde os personagens são protagonistas invencíveis, o oldschool coloca todos em pé de igualdade com o resto do mundo seja de qual nível de ficha ele for. O dado decide, e a morte está sempre à espreita. Não marque bobeira.
Esses saves também mantêm o ritmo do jogo rápido e direto. Não há combate arrastado contra venenos que tiram 1d6 por rodada ou enrolação para decidir se a morte chega. Falhou o save, morreu. Enxugue as lágrimas, reclame do mestre no Reddit, mas não na mesa, role os dados, faça outra ficha de nível 1 . Segue o jogo. Essa imparcialidade é uma virtude, não uma falha. O mundo não favorece idiotas, o boneco apenas existe ali no mundo, sem favores diferenciados constantes dos deuses das regras. Doa a quem doer. E os que sobrevivem se tornam heróis por mérito, não por script. Além disso, esses saves criam um aprendizado profundo. O jogador que vê seu mago cair morto ao ler um pergaminho empoeirado esperando uma magia nova, nunca mais fará isso sem pensar. O medo, aqui, se torna prudência. E a prudência é o que separa os aventureiros dos cadáveres, o adulto da criança. Se frustre aprendendo no processo como a não repetir o mesmo erro.
As edições modernas suavizaram essas regras. Não se tratam de edições de jogos de RPG, mas sim de happy hour constante. Você não é permitido se frustrar, a dopamina deve ser constante. Ficar triste por falha se tornou ataque intimo à sua existência que deve ser combatida nas redes sociais, não mais como oportunidade de aprendizagem. O level drain virou um debuff temporário ou um dano que se cura com descanso "longo" para não te dar gastrite e te lembrar que ninguém te ama de verdade no mundo real. Os saves de morte se tornaram "falha três vezes antes de morrer, mas tem que ser três vezes direto, assim como os 3 beijinhos sem encostar que sua prima era forçada a te dar porque a mãe dela mandou", diluindo o impacto da morte. Tudo passou a girar em torno da "diversão garantida". Mas ao fazer isso, esses sistemas removeram o peso das decisões. Nada parece definitivo. O mundo parece seguro, domesticado. E com isso, o jogo perde a tensão, a cautela, a vitória por mérito. Perdeu alma, mas sem perder o nível do boneco.
Em contraste, o D&D oldschool e seus retroclones entendem que o jogo é mais rico quando o risco é real. Que sobreviver já é uma recompensa. Que a morte pode ser educativa, que o medo pode gerar respeito e que a tensão constante transforma a campanha em algo memorável. O level drain e os saves de morte não são falhas de design: são lembretes de que esse mundo não gira em torno dos personagens e é por isso mesmo que vale a pena explorá-lo. Mas para isso acontecer, você precisa ser o rapazinho barbado que aparece no espelho todo dia de manhã e lidar com as adversidades do dia, não ser o eterno Peter Pan que prefere "modernizar" seu oldschool mudando regra que não precisa. Ou pior, chorar no Reddit buscando colo porque o mestre cruel e retrógado roubou seu doce. Estude, entenda o propósito do jogo, aplique em mesa, absorva a proposta. Depois disso decida se esse estilo e regras serve para você. Brincadeiras à parte, se não servirem, tudo bem. Só não diga que são regras ruins, ultrapassadas. Só assuma que não são para você, que você não é tão oldschool assim como diz por aí só para fazer parte de um grupo descolado. Não tem nada de errado ou feio nisso. A verdade liberta. Bons jogos.
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