Um overview da minha campanha de mais de 2 anos em Arden Vul.
Minha campanha de Arden Vul entrou em hiato no início de 2025. Como planejo voltar com ela por agora, achei o momento propício para fazer uma reflexão sobre a experiência que foi mestrá-la por 2 anos e meio consecutivos (mais de 100 sessões). E não se preocupe, se você é jogador em AV ou pretende ser, esse será um relato sem spoiler (ou pelo menos com spoilers bem leves).
Em 2022 eu perguntei a alguns compatriotas rpgistas do Discord se eles teriam interesse em jogar alguma megadungeon. Dei a opção da gente jogar Maze of the Blue Medusa ou Arden Vul. Eu sei, são duas propostas radicalmente diferentes. E eu sei, Blue Medusa não é nada Oldschool ( Por já ter mestrado uma campanha nela, talvez eu poste mais sobre futuramente. É excelente em seu próprio direito, mas não em sua proposta).
Por detalhes que não me recordo mais, acabou vencendo Arden Vul. O fascínio que as pessoas tem por algo que seja o "maior" em alguma coisa é bastante curioso. E, apesar de não ser uma dungeon recém lançada na época (O mega módulo cenário/campanha foi lançado em 2020) , Arden Vul é considerada ainda hoje como a maior megadungeon já publicada. E o que de fato me interessou, uma das melhores também.
Por essas e outras, é importante dar um apanhado geral sobre o que é Arden Vul em si antes de explicar sobre a minha experiência mestrando ela por mais de 2 anos:
The Halls of Arden Vul é a maior megadungeon já publicada para oldschool dnd (ou qualquer jogo de que tenho notícia). Ela foi criada por Richard Barton e lançada pela Expeditious Retreat Press. Ele trabalhou mais de 10 anos para chegar nesse magnum opus de megadungeon. Publicada para ser jogada em OSRIC, ela na verdade foi feita usando o adnd1e e seus suplementos (tem conteúdo tanto dos 3 cores books, como do Fiend Folio e até do Unearthed Arcana), mas foi publicada como OSRIC para evitar problemas com a WOTC. Com mais de 1.100 páginas, Arden Vul cobre conteúdo de jogo dos níveis 1 ao 20 e oferece (aqui entra o spoiler leve) mais de mil salas distribuídas em 2 dígitos de níveis principais e 2 dígitos de subníveis interconectados, formando uma estrutura vertical profunda e complexa.
Mais do que uma megadungeon, AV é um cenário campanha que gira em torno da cidade em ruínas de Arden Vul, uma cidade da antiguidade construída sobre um plateau descoberto por dois aventureiros (a guerreira Arden e o Usuário de Magia Vul) que termina em um penhasco chamado The Long Falls. Originalmente um centro de poder, religião e conhecimento mágico (pense em uma cidade como Vaticano) do império Archonteano, hoje as ruínas abrigam perigosas criaturas, civilizações subterrâneas esquecidas, mortos-vivos, cultos fanáticos, seitas guerreiras e inteligências alienígenas. A megadungeon é altamente vertical e possui múltiplas entradas e saídas (coisa rara ainda em 2025), com mapas ricamente detalhados e a perder de vista. Diferente de aventuras lineares, Arden Vul é um verdadeiro sandbox, onde o mundo reage aos jogadores por meio de eventos, conflitos entre facções e personagens com agendas próprias.
A campanha enfatiza exploração, sobrevivência e gerenciamento de recursos. Com grande foco na Dungeon em si, mas com um Hexcrawl auxiliar da região, caso os jogadores queiram dar um tempo na dungeon e explorar os ermos (mas não há conteúdo lançado ainda para essa parte. Cabe ao mestre de jogo cobrir essa região com material autoral ou módulos prontos) Há um forte foco em temas como arqueologia mística, ruínas de civilizações antigas (especialmente egípcia) e conflitos políticos e religiosos envolvendo ordens extintas (e não tão extintas assim), impérios perdidos e cultos bizarros . Os encontros não são balanceados: Apesar de seguir a estrutura do quanto mais profundo, mais perigosos, o perigo é real desde o início, exigindo estratégia e cautela dos jogadores. O cenário inclui locais notáveis como ruínas de templos a deuses antigos, cavernas que levam a locais perdidos e isolados, mercados subterrâneos ilegais, coliseus com esportes letais e muito mais.
O material acompanha diversos apêndices com centenas magias novas, monstros originais, artefatos únicos e NPCs (com seleção de grupos inteiros de aventureiros para os jogadores encontrarem em suas incursões) todos muito bem desenvolvidos. A cidade de Gosterwick funciona como ponto de partida da campanha, oferecendo um ambiente urbano rico em ganchos e interação social. Arden Vul é um monstro de campanha. Coerente e densa em lore, ideal para grupos que valorizam o estilo oldschool de campanha, interação diplomática para além do combate, e ao mesmo tempo um combate tático e cuidadoso com um vasto repertório de novos e antigos monstros, além dos mistérios e enigmas arcanos em uma lingua perdida que precisa ser traduzida. É uma das experiências mais completas e desafiadoras disponíveis para campanhas longas perfeitas para o estilo CAG de jogo com sistemas profundos que suportam todo o conteúdo.
Pronto, agora que você sabe o que é AV, voltemos ao relato:
Arden Vul não foi escolhida só por ser a maior e não somente pelo interesse dos jogadores em ver do que se tratava. Uns meses antes de oferecer a mesa (como em quase todos os casos deve ser feito) eu já estava lendo o módulo. É um módulo gigantesco (mais de 1100 páginas, como disse acima) então quase ninguém se dispõe a debruçar-se sobre um material dessa complexidade só para se gabar online ou para mestrar oneshot. Você tem que investir seu tempo e se interessar pelo material antes de qualquer coisa. E foi o que aconteceu comigo. Passei algumas semanas lendo, mas não gosto tanto de ler assim, então só li o essencial para começar (cerca de 300 páginas, envolvendo a história geral do módulo, as facções e seus objetivos, a história do mundo, ganchos, monstros e alguns dos andares diretamente ligados à superfície) e ofereci para o pessoal. Por sorte, ou azar, sei lá, eles escolheram o módulo.
Digo por sorte, porque é um módulo excelente, nunca vi mapas de RPG nessa escala serem tão variados e interconectados. A montanha é um queijo suíço. Tem várias entradas, várias formas de percorrer os diversos andares, locais para se abrigar, se defender, inimigos para encontrar e alianças para se fazer. Isso tudo só contando a superfície. É surreal.
Então, a partir dessa leitura e da escolha, decidimos por usar OSE em sua versão Advanced. E assim foi por um ano de jogo. Nesse período, o grupo foi variado. A maior parte do grupo original se foi, e muitos outros entraram. Alguns desses ficaram e são os que continuam até hoje (firmeza, galera). Foi com esse grupo que começamos a perceber a parte de azar que comentei acima e a conversar sobre os limites do OSE. A campanha foi progredindo e começou a ficar gritante as adaptações que eu tinha que fazer para o sistema aguentar a pressão. Especialmente no que cabia à questão de magias. Não demorou para abandonarmos as descrições do OSE e adotar as do adnd1e e do OSRIC. Antes disso eu já estava adaptando várias coisas diferentes entre os dois sistemas no meu lado do jogo. Alguns mais gritantes que outros (como diferença na matriz de ataque dos monstros, HD dos mesmos, além de pagar ao treinar para evoluir e não perder o personagem ao cair com zero de hp ), mas mesmo assim, já estava pesando a mão nas adaptações.
Depois de várias conversas, decidimos mudar para o OSRIC e usar o adnd1e quando necessário. Assim o fizemos e foi a melhor decisão que poderíamos ter tomado. Todos (ou quase todos) investimos em aprofundar mais no adnd1e e usar cada vez mais seus subsistemas para tirar o maior proveito possível da edição enquanto aprendíamos o sistema. Como tudo na vida, depois de feito, não pareceu tão difícil assim. E digo que, depois de 1 ano e meio usando adnd1e, não dava mais para voltar atrás. O jogo ficou muito superior.
Há sim momentos em que combates longos tomam a sessão quase toda (sim, não são combates comuns que aparecem toda sessão, são épicos, com personagens level alto, e uma variedade impressionante de opções) mas são desgastantes. Isso vindo de alguém que não é tão fã assim de combate. Eu sou mais o cara da exploração do cenário. Mas mesmo assim, conhecendo melhor a dinâmica do jogo, os combates ficaram muito mais interessantes.
Continuando sobre a parte do azar, por ser uma campanha enorme, te exige um investimento muito grande de maneira geral. E é um módulo que não tem muita arte, são paredões de texto a todo o momento. Além de descrições de salas muitas vezes verborrágicas, com informações desnecessárias para a maioria dos grupos de jogo.Eu geralmente não preciso saber, especialmente não no início das descrições, em 3 parágrafos, o que era aquele ambiente a 2 mil anos atrás. Eu quero saber como está agora, quem, o que está ali e o que exatamente os personagens veem ao entrar na sala. Não faltam detalhes, mas há muita coisa supérflua e as importantes costumam estar espalhadas no texto. Você precisa de um marcador de texto para grifar a parte essencial para uso em mesa. Além de ter disposição de ir e voltar em pontos a centenas de páginas distantes uns dos outros para entender o todo de um local. Magias, items mágicos e items importantes de maneira geral, só tem suas descrições no final do pdf (ou vol. 4 caso seja maluco de usar a versão física dos livros para mestrar). O trabalho é massivo, então nada menos esperado do que ter um trabalho enorme também para usar o material. Não consigo imaginar alguém conseguindo mestrar isso usando os livros físicos (4 volumes com mais de 300 páginas cada, além de um volume 5 só para os mapas.)
Foi só depois do hiato que passei a ter tempo para ler melhor outras coisas e módulos que queria, com layout mais agradáveis e textos mais direto ao ponto. Além de poder ter tempo para jogar em outras mesas e sentir que não existe só um mundo de jogo em rpg de mesa. Mas as desvantagens param por aí.
No fim das contas, as vantagens superam em muito as desvantagens com AV. O local funcionando em mesa é excelente, há muita qualidade no jogo. O autor conhece muito bem Adnd1e e seu potencial. Só o material extra como magias, monstros e items mágicos únicos já compensam a leitura do livro. Por isso espero retornar com a mesa em breve. Querendo ou não, os jogadores sofreram tanto ou mais do que eu em jogo. Perderam muitos personagens, tesouro. Perderam a base com milhares de peças de ouro, items mágico e o próprio orgulho. Mas se divertiram bastante, assim como eu me diverti.
A experiência de jogo, de explorar cada novo lugar, descobrir cada novo segredo, ligar os pontos de uma trama, dar de cara sem querer com um nemesis recorrente, não se perderam. Eles exploraram a superfície da cidade, praticamente expulsaram uma facção da dungeon, mudando o status quo de um dos andares principais. Conseguiram milhares em tesouro no processo. Além de vários items mágicos. Foram ameaçados por um dragão, foram extorquidos por esse dragão. Planejaram a destruição de um grupo de aventureiros que os perseguia (por eles terem os roubado em primeiro lugar) e falharam miseravelmente no processo. Viraram aliados de um rei de uma facção local. Depois descobriram que ele era viciado em jogo, que tinha dissidentes no reino dele querendo tomar o poder. Decidiram os ajudar. Então desistiram. Resolveram dar um tempo na dungeon investir na reforma de um andar que limparam e fazer uma base ali, além de explorar os ermos com a ajuda de uma paladina amnésica que resgataram de uma sala de tortura. A missão da paladina era encontrar uma clériga desaparecida. Perderam vários personagens level 5 no processo, inclusive a paladina também level 5 soterrados por armadilha feita por, pasmem, kobolds.
Então seguiram a pista da desaparecida de volta para a AV, ignorando os vestígios de destruição que uma grande enchente havia provocado nos arredores de Gosterwick como efeito de grandes chuvas mais a barragem que indiscriminadamente abriram em AV. Pararam com o jogo sabendo melhor o paradeiro da clériga, mas a ganância falou mais alto. Mexeram em um sarcófago que não deveriam embaixo da base, perderam a base pra uma entidade devastadora. Agora estão pobres, sem teto e criando caos com o único taverneiro disponível na superfície, provocando um dragão para que ele destrua a taverna do pobre taverneiro infeliz.
E fizeram muito mais do que isso, como achar uma caverna de urso que dava em um complexo cheio de sombras, a visita ao famoso mercado de escravos dos cultistas de set e a descoberta de passagens secretas para andares profundos com males inimagináveis e tesouros incontáveis. Por pura sorte (ou azar). Ouso dizer que isso tudo que fizeram nesses 2 anos e meio (descrito de forma bastante resumida) não é nem 10% do potencial da dungeon e certamente não mais do que 15% do espaço físico que ela fornece. Essa campanha é um monstro.
Por ser um monstro que precisa de dedicação, precisa também de um sistema robusto que dê suporte ao jogo e um grupo e mestre dispostos e dedicados a se divertir enquanto aprendem, AV é uma infinidade de trabalho, mas também de diversão. Sim, há alguns que ousam mestrar usando sistemas narrativistas, outros com hack de 5e. Não digo que é impossível, eu mestrei usando OSE por um ano. Mas acredito que o potencial dela merece um adnd1e (ou OSRIC).
Futuramente, se tudo der certo, mestrarei ela ainda mais (quero que os jogadores pelo menos consigam atingir o fundo da dungeon, pelo menos para falar que foram lá visitar). Se esse for o caso, volto aqui com o relato número 2. Que Thoth nos ilumine.
Comentários
Postar um comentário