Existe realmente o tal do RAW (Rules as Written) em D&D Oldschool e Retroclones?





Antes de qualquer coisa, definamos o que é RAW: 

Segundo o Chatgpt, no contexto dos jogos de RPG de mesa (TTRPGs), jogar RAW significa jogar seguindo as "Regras Como Escritas" (Rules As Written). Isso quer dizer que os jogadores e o Mestre do Jogo (MJ) seguem exatamente o que está escrito no livro de regras oficial, sem criar regras caseiras, interpretações ou modificações.

Alguns pontos importantes sobre jogar RAW:

  • Se uma regra for ambígua, os jogadores seguem estritamente a formulação no livro, em vez de decidir com base na intenção da regra (Rules As Intended – RAI) ou no que faria mais sentido narrativamente.
  • Reduz a liberdade do MJ para tomar decisões, priorizando a adesão rigorosa às mecânicas oficiais.
  • Pode resultar em situações contra intuitivas ou inesperadas, caso as regras escritas tenham falhas ou ambiguidades.

Pronto. A partir dessa definição, dá para dizer que existe realmente o jogo RAW dos clássicos? Resposta curta: Não, o jogo completamente RAW não existe porque as regras não são tão completas assim e não tão claras, sem incongruências. Mas dependendo da intenção do DM,  é possível tentar algo próximo. 

Resposta longa: Estamos vivendo um momento curioso em RPG de mesa. A Hasbro está não só tentando se desvencilhar do que fez D&D ser o que é, como está agressivamente atacando os criadores originais e sua própria história, buscando se tornar algo completamente higiênico e esterilizado de toda e qualquer dualidade. Essa postura é curiosa nesse contexto de jogar como escrito. Pois esse seria o intuito de regras bem escritas, não? Acabar com a dualidade, as arestas, as ambiguidades das regras. Tudo limpo e higiênico. Ousado demais, não? 

Mas uma coisa é certa, o D&D moderno lançou várias modas que pegaram. Como  o abandono das Matrizes de ataque, o THAC0 (to hit armor class zero), a troca de Armor Class (descendente) por Armor Class Ascendente e a adaptação de testes de salvaguarda mais simples e mais diretamente relacionados aos atributos, dentre outros detalhes. Não é só de coisa ruim que vive o D&D moderno (não que eu use qualquer uma dessas modificações nos meus jogos, mas não acho ruim também.) Tanto é que alguns retroclones adotaram alguma dessas novas regras em seu texto (OSE tem opção de classe de armadura ascendente. LotFP só tem essa opção. S&W usa uma salvaguarda simples de um número com modificadores individuais de classe e etc.)

O D&D moderno também tentou deixar as regras mais claras (pelo menos em comparação com o jogo original), mais organizadas e mais detalhadas. Hoje tem regra para praticamente tudo que o jogo propõe em seus livros (que infelizmente nada tem a ver com o jogo de aventura clássico de outrora) e se não tiver, daqui a pouco sai algum suplemento custando 30$ que vai cobrir o que faltou. Então o conceito de aplicar as regras como escrita é bem tranquilo de entender e seguir. Você em tese joga o jogo como ele foi feito para jogar, sem house rules, sem rulings, sem nada improvisado. Você faz o que está escrito ou que te é lembrado pelo advogado de regras da mesa que está lá no texto. Isso é inclusive interessante para as editoras, que sempre vão te vender o método certo de jogar o jogo, te cobrar por aquele material que faltou no core, com o argumento de que tudo foi testado e balanceado previamente por profissionais. Infelizmente, isso raras vezes parece verdade. Há muito material oficial novo, não só de D&D, que parece que foi muito mal testado, ou sequer testado em primeiro lugar.

Mas e antigamente? Quando tudo era mato, como era?

Nos D&D antigos, nem tudo era coberto pelas regras. Na verdade, no início, pouca coisa era. Apenas o essencial do jogo tinha regras propriamente ditas. O jogo não era pensado para ser usado universalmente apenas lendo o material. O jogo foi feito de forma artesanal, costurado com a prática de jogo, cheio de buracos que posteriormente foram sendo cobertos por novas regras em suplementos, zines, cartas e etc. Pra no fim de sua vida comercial o  D&D clássico já parecia mais com um proto AD&D do que os 3 livretos marrons de outrora.  Inicialmente e até certo ponto, até meados da linha de AD&D1e, o jogo deixava brechas para o mestre de jogo decidir como cobri-las. Seja escolhendo quais mecânicas usar em suas campanhas (O AD&D fala sobre isso em diversos pontos. Sobre o DM decidir no início de sua campanha qual seleção de regras aplicar no jogo e quais descartar.), seja ele mesmo adaptando as já existentes com seu toque pessoal ou até se virando na hora do jogo com simples rolagens básicas improvisadas. 

Então, dizer que o jogo original foi feito para ser jogado RAW, é forçar um pouco a barra assim como a galerinha da modernidade adora dizer que regras só servem para restringir a criatividade do mestre. Não me entenda mal, eu sou um que se ferrou bastante com o "rulings not rules" mal intencionado. Hoje eu entendo a importância das regras se bem aplicadas. Mas dizer que D&D clássico precisa ser RAW para ser jogado e qualquer coisa que não seja isso não é o verdadeiro D&D, não é nada realista. O jogo nunca foi feito para ser limitado em suas regras. Pelo menos não antigamente. Sim, existe um mínimo para que um jogo seja D&D e se afastar muito disso faz o jogo virar outra coisa, quase sempre pior. E Eu entendo perfeitamente o que muitos querem dizer sobre jogar dentro das regras e concordo 100%. Mas acho que é impossível jogar completamente como o jogo está escrito por dois motivos.

O primeiro é que o jogo originalmente e por um breve período (se considerar os mais de 50 anos de D&D), como já disse acima, foi feito cheio de brechas e até grandes buracos. Não vou dizer que foi proposital, porque não foi. Os caras estavam aprendendo enquanto faziam, mas isso teve um grande benefício para o jogo. O benefício da criatividade. Não o benefício da ignorância de jogar as regras pela janela ou abusar das brechas para cobrir com tolices narrativistas, mas sim o de gente que queria entender o jogo e suas mecânicas e então criavam as suas próprias para cobrir os buracos, esclareciam o que era confuso e tiravam a sua própria conclusões sobre o texto. Por esse motivo temos excelentes retroclones hoje (graças a isso e à WOTC e sua OGL, diga-se de passagem). Então jogar RAW nesse caso, seria ter que jogar sem entender os pontos obscuros do jogo, sem interpretar as regras. Seria apenas usar o que está escrito, o que em si eu sinto que seja bastande difícil, senão impossível. Há fóruns e grupos até hoje, depois de 50 anos, discutindo como cobrir isso ou aquilo no OD&D, como interpretar esse ou aquele ponto do texto. Isso não é RAW, isso é tentar entender o jogo e interpretar do seu jeito para aplicar na sua mesa. 

O segundo motivo é que, também já dito mais acima, o próprio Gygax reforçava no texto do AD&D1e que a campanha do mestre de jogo era dele mesmo, de mais ninguém. O DM que iria decidir o que usar e como usar das mecânicas apresentadas, tornando o jogo uma experiência única para seu grupo. O DMG veio mais como uma grande caixa de ferramentas para servir a todo o tipo de campanha possível inspirada pelo Appendix N, não que todo o material deveria ser usado em toda campanha em AD&D existente. Mas, novamente, um mínimo de aplicação de regras é necessário para se ter a experiência prevista pelo Gygax no texto, não era simplesmente jogar tudo para o alto e dizer que sua mesa era AD&D sendo que nem procedimento de exploração você usava. Nesse caso do AD&D, também é bem difícil dizer que o jogo é possível ser jogado RAW. Sim, eu sei que BrOSR existe, mas eu não boto muita fé que eles usam literalmente tudo dos livros como escrito também não. Mas estou aí para ser persuadido. AD&D é um sistema bem complexo em seus detalhes. Aplicar ele 100% é algo que vejo ser bem complicado. Mas seus fundamentos não é esse bicho de sete cabeças que muita gente adora babar que é. 

Isso não quer dizer que eu não me esforce para aplicar as regras como elas foram previstas. Especialmente no AD&D1e eu acho isso essencial para um melhor aproveitamento do jogo. No original, eu acho que é importante entender o propósito dos criadores do jogo e tentar aplicar em mesa o que eles queriam. Mas na prática de jogo, na minha concepção pelo menos. O RAW é, pelo menos em parte, impossível em D&D clássico. Não tem como aplicar algo que já na teoria não está esclarecido. Mas é possível interpretar, adaptar e improvisar. 

Ainda bem, porque senão não haveria tantos retroclones excelentes por aí, com suas próprias interpretações do jogo original e sua versão avançada. Não que os desenvolvedores dos retroclones não entendessem as regras, ou não gostassem de como estavam escrita, mas sim pelo fato de que eles precisaram lançar mão de suas próprias interpretações de regras obscuras ou de elementos que o jogo não cobria. Além de terem que se preocupar com a questão Legal (não plagiar o texto, mesmo regras não sendo passíveis de registro). 

Então, é isso. Jogar o jogo 100% como ele foi escrito, pelo menos em D&D clássico, é bem difícil de acreditar. Mas isso não é desculpa para não ler as regras como tal, entende-las, aplicar da melhor maneira possível em mesa e só inventar moda quando as regras não cobrirem e mesmo assim tentar se embasar no texto já escrito para uma fluidez melhor de jogo dentro da proposta do sistema . Não seja preguiçoso, não use desculpas esfarrapadas como  "nem os autores jogavam como escrito, logo, eu vou brincar de faz de conta e ignorar as regras e continuar dizendo que jogo D&D". Mas também não seja rígido, não precisa se matar tentando entender regra obscura que abrem espaço para múltiplas interpretações e dizer que a sua versão é RAW e a dos outros não. Pelo menos não quando quiser realmente jogar D&D em vez de ficar falando que faz isso melhor que o outro na internet.  

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