"Mas o que Gygax faria?" O mal da idealização.


 

Gygax foi o cara. Ele cimentou o hobby que todos amamos odiar hoje. Graças a ele milhões de nerds antisociais gastam horas online discutindo bobagem na internet em vez de jogarem o jogo. Religiões foram criadas, Países dominados, até bilionários que planejam a dominação mundial se interessaram pelo jogo de fundo de quintal que virou estilo de vida no século XXI. Como já deu para perceber, esse não vai ser um texto histórico, mas sim vai tocar em momentos (facilmente verificáveis) da história do hobby para organizar o contexto e fazer uma crítica. Então, vamos lá. 

Exageros (com fundo de verdade) à parte. Gygax realmente foi um autor prolífico, com seu ponto alto no início de carreira e depois com momentos de lucidez durante o resto de sua carreira, banhados por status de celebridade e declínio. Foi sem dúvida um autor que merece todo o respeito pelo seu legado, pois não só criou um jogo que prospera até hoje, mas por um período foi um designer que atingiu uma mina de ouro criativo. Gygax fez o que grandes inventores fazem, pegam milhares de coisas que já existiam antes e produz algo inovador, funcional e essencial para uma experiência diferenciada que prospera pelas décadas. Mas...eu não estou aqui para ficar puxando o saco de Gygax e nem reconhecer a genialidade e a contribuição essencial daquele outro cara...aquele que esqueci o nome. A sim, o Arneson. (Mais brincadeiras à parte, Arneson teve sim um papel fundamental na criação do D&D e do hobby, inventando conceitos imprescindíveis para o jogo que tornaram D&D reconhecível e o RPG em geral como algo tão difundido em várias mídias até hoje) Mas esse texto não é para celebrar esses gigantes, muito pelo contrário. 

Vejo na internet muita gente tentando diminuir a grandeza dos autores de D&D e seus colaboradores iniciais com supostos elementos de sua vida extra jogo, como se isso fosse anular o que eles realmente fizeram para a cultura e o RPG. Não vão. O que eles fizeram, para quem realmente valoriza e quer contribuir para o hobby, jamais será esquecido, muito pelo contrário, será relembrado e aprimorado pelo futuro, como já a mais de 20 anos acontece com OSR e seus (bons) derivados. Não se reinventa a história, se estuda, reconhece o que aconteceu, levando em consideração em quem está contando, sem filtros ideológicos e busca-se aprimorar. Reinventar história, tornar vilão quem era só humano e tornar humano atitudes completamente vis, não colabora, só contribui para a ruptura, a mentira e monta palco para os oportunistas, que como urubus famintos, rodeiam qualquer comunidade com o menor sinal de podridão. 

Então, vamos aos fatos que nos interessa, os que concernem o jogo. Gygax criou AD&D1e (independente dos motivos sórdidos que adoram especular por aí). O fez com diversos colaboradores, fato. Ele reorganizou, expandiu e criou novas regras para o D&D original, daí o nome Advanced que precede o termo. Foram anos e anos de testes, colaborações e focos distintos em diversas mesas, campanhas com focos diferentes, demandas diferentes. Daí ele montou os 3 core, que foram lançados em anos diferentes, às vezes contradizendo um ao outro (sim, infelizmente há pontos em que se contradizem e que exigem do Mestre de jogo responsabilidade em suas próprias escolhas)e com os anos, até o fim dos tempos, teve de dar esclarecimentos sobre as regras e situações obscuras do livro (seja em revistas oficiais, fóruns de internet, até em conversa de bar). 

Com os anos passando, erros sendo cometidos em sua vida pessoal e profissional fora do jogo (mudança para Hollywood, pesquise se não souber, rasteira que sofreu na TSR por conta dessa ausência, e etc), Gygax foi mudando de ideia sobre o jogo, muitas vezes precisou fazer isso para sobreviver, pois foi impedido de usar material original que havia produzido anteriormente (ou sequer pensado antes, pesquise sobre Dangerous Journeys, TSR Lawsuit). Logo, especialmente no fim da vida, ele tinha opiniões bastante curiosas sobre as próprias regras que criou décadas antes para seu jogo. 

É nesse ponto que eu queria chegar. Nessas novas opiniões que abutres e oportunistas adoram usar para desqualificar o jogo original e sua versão avançada. Muita gente (especialmente os críticos modernos ao D&D clássico) adoram falar mal das regras originais com um argumento já marcado em pedra, o tal do "Mas nem Gygax jogava assim". Sim, isso é verdade. Algumas características do jogo, ele realmente dizia abertamente que não usava em suas campanhas. Mas ele já dizia isso desde quando escreveu os livros. Há trechos em que ele simplesmente dizia que o conjunto de regras eram para facilitar o jogo do mestre na campanha do momento, que o objetivo não era usar todas as regras, mas sim as necessárias para aquele estilo de campanha. Ele também dizia que certas regras foram adicionadas pois alguns de seus colegas e jogadores gostavam delas, por serem mais granulares, mais "crunch". Isso, para eles, tornava o jogo melhor. Algumas das regras poderiam ser sim mais complexas, mas não deixavam de ser funcionais e não deixavam o jogo pior, o deixavam apenas mais robusto. E um bom livro de RPG precisa disso, de opções. De alternativas para o mais diversificado tipo de Mestre de jogo. Mas como sempre, a internet precisa ser literal, enviesada, oportunista e maliciosa. 

Os ataques que são feitos ao jogo clássico costumam ser esses "regras confusas, mal escritas e desnecessárias". A nível individual, de alguém que não queira investir no jogo, que não deseja se esforçar para entender um conjunto de regras, que queira só passar o tempo leve tomando seu suco de uva e brincando com os amiguinhos, eu entendo perfeitamente e concordo. Eu também gosto de suco de uva e adoro tempos leves com meus amiguinhos. Mas como uma verdade absoluta, essa afirmação é completa tolice. 

O jogo, sim, foi escrito em um período em que não existia forma prática de produzir manuais de jogos. Especialmente hoje,  na era da internet, a demanda de leituras rápidas e eficientes atingiu níveis nunca antes vistos. Tem seu lado positivo e negativo. Nós também não podemos ignorar o progresso (como banir IA cof cof) mas sim precisamos avaliar cada um de forma crítica. 

Sim, seria muito melhor se os livros originais fossem reescritos de uma forma mais digerível para audiências modernas, todos queremos mais jogadores. Mas infelizmente, isso jamais será possível em sua totalidade, OSRIC 3 está chegando, assim como já existe OSE, assim como S&W e outros. Mas no fundo, essas versões não agregam tudo o que o original propunha. Para alguém que queira realmente aprender o jogo com todas as suas nuances, vai precisar investir tempo e ler o original, além dos detalhes de esclarecimento posteriores espalhados por aí, não tem jeito. 

Mas de qualquer forma, essas críticas que fazem sobre o sistema original e  que usam de má fé com o argumento de que Gygax não jogava assim, estão completamente equivocadas e são muitas vezes  absurdas. Por diversos motivos. Um deles é que muito do que se afirma sobre a forma que o autor jogava não passa de ficção. Se você procurar, especialmente nas entrevistas  que o filho do Gygax já fez quando questionado sobre como eram suas partidas com o pai, percebe que Gygax seguia sim os preceitos que pregava nos livros. Não cada detalhe, obviamente, mas muito do que ele propunha estava em suas partidas. Hobbystas que literalmente jogaram com ele afirmam isso até hoje. Que ele jogava diferente em partidas diferentes. Em eventos era de um jeito, em campanhas de casa, era de outro. 

Mas o grande mal desse tipo de afirmação nem é o que falam, nem sobre de quem falam, mas sim sobre essa cultura de idolatria à personalidade que vemos muito online (e bem antes disso, na verdade). Há controvérsias de onde vem essa busca do ser humano em achar algum ídolo para se escorar, idolatrar e colocar acima de todo o mal. Mas o fato é: Todos somos apenas humanos. Todos erramos, todos acertamos, todos mudamos de opinião. 

Tudo que escrevo hoje no blog, tenho certeza que (se ainda estiver vivo) vou olhar daqui uns anos e dizer que fui um completo idiota (ou adicione qualquer crítica "super ponderada" do reddit aqui) e discordar da maior parte do que falei...Ou não. Nossas experiências nos moldam e elas são imprevisíveis. Talvez eu reforce algum pensamento, talvez eu mude de ideia. Isso acontece durante a vida.  É perfeitamente normal e esperado que seja assim. 

Então, nada diferente era de se esperar do grande Gygax, pois ele era um ser humano. Ele mudou de ideia com os anos. Seja sobre sua própria vida, suas escolhas, seja sobre o jogo que criou, aperfeiçoou e jogou. Isso é normal. A 20 anos eu estava jogando 3e e amando, olha o nível. 

Idolatrar alguém, alguma coisa ou um período como se fosse a grande verdade absoluta, perfeita e inegável só prejudica as discussões e não contribui para o entendimento da realidade. O cara foi extremamente importante para o hobby. Criou, para mim pelo menos, a melhor versão existente de seu próprio jogo. Ele foi muito bom. Muito porque ouviu seus companheiros de hobby, assimilou as suas contribuições e por isso produziu um jogo melhor. Mas ele não era perfeito. Ele não usava algumas regras do jogo.  Mas e daí? O jogo não foi feito para usar todas as regras o tempo todo mesmo. Eu uso várias, mas não todas. Eu gosto das que escolhi e me divirto, meu grupo também. As regras funcionam independente de quais escolha usar, desde que use o suficiente para não quebrar o jogo (não é de se surpreender, dado os testes e contribuições quando elas foram feitas), elas tornam a experiência de jogo melhor (para mim). 

Então, sobre aquela questão do início "What would Gygax do? (o que Gygax faria?)". A resposta: Não interessa. O que ele fez e que é importante, está no texto do livro, em suas mecânicas core. O que ele fez depois ou antes, não importa a nível básico. Sim, saber as opiniões dele (e como elas mudaram) ajuda a entender o legado e o homem, mas não é essencial para entender como jogar o jogo. 

Quando alguém vier chorar dizendo que prefere jogar sistema que ele achou no Reddit de uma página só, ou aquele clone minimalista do B/X porque AD&D1e é mal escrito,  não funciona e que "nem o Gygax jogava assim", ignore.  Ou faça um joinha e deixe a pessoa se divertir na versão super enxuta do hobby que ela delira que exista em sua totalidade. Então, pegue seu DMG, se sente confortavelmente em uma cadeira, tome seu café e descubra algo novo que jamais tinha visto antes no livro, apesar de ter lido e relido várias vezes. Aplique na sua mesa e surpreenda-se mais uma vez com a genialidade que está entre nós a mais de 40 anos, o bom e velho AD&D1e. Bons jogos. 

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