Teoria VS Prática (Ou porque é chato tentar acompanhar raciocínio de quem não joga o jogo)



É curioso como na maior parte de servidores de Discord (ou subreddits da vida) que faço/fazia parte, parecem girar em torno de debates teóricos intermináveis sobre regras extremamente específicas, hacks de sistemas que não precisam ser hackeados, balanceamento de classes que não precisam de balanceamento e ajustes de mecânicas que são ruminados infinitamente na teoria, mas não soam nada práticos e  que nunca vão sair do papel, pois no jogo isso quase/nunca acontece. Não que discutir regras seja um problema por si só,  longe disso, a gente faz isso no JACA o tempo todo. Mas existe um abismo considerável entre teoria e prática que muita gente parece tropeçar e cair de cabeça dentro sem perceber. Quando você conversa sobre teoria sabendo como é a prática, a utilidade do diálogo é diferenciada. Você reconhece aquela queixa, você sentiu ela em mesa também. É de fato uma experiência compartilhada de "ambos passamos por isso, esse cara realmente joga". Quando a choradeira é hipotética, quando acontece só na sua cabeça, a conversa não desenvolve. No máximo vai ser digna de outros textões genéricos e automáticos que não te ajuda e definitivamente não ajuda quem vem depois e tem suas próprias dúvidas. 

Mas, por outro lado, tem servidor que é o contrário (1,2). Onde o foco é mais o jogo mesmo. As campanhas rolando, os jogadores  tomando decisões a partir das dificuldades encontradas, os encontros acontecendo com a sua beleza caótica ou previamente planejada pelo mestre de jogo, as consequências surgindo. A necessidade de "ajuste de sistema", quando ela aparece, é porque rolou algo em mesa e o mestre pensou “ok, vou fazer um ruling aqui ou ajustar essa regra para essa situação sem inventar moda desnecessária ou usar ilusões que faz parecer algo natural mas que foi artificialmente colocado por mim no jogo”, ou “acho que essa mecânica sobre resistir veneno pode servir para esse desafio específico de inundação dessa dungeon”. Ou seja, é uma necessidade emergente da prática, não algo artificial e super específico da especulação teórica.

Porque isso acontece, né? Teorizar sobre situações hipotéticas que nunca (ou quase nunca) aparecem no jogo real vira um exercício enfadonho, estéril e muita vezes delirante. Gente falando "e se o mago pegar esse combo aqui que permite que ele ataque 12 vezes com uma adaga mágica" ou "essa regra aqui é terrível (nunca usei) porque ela não serve para essa situação (que nunca vi acontecer em mesa). Ou até mesmo, os grandes gurus do RPG de mesa que inventam moda e pegam emprestado termos de outras áreas (literatura, música, astrologia, constelação familiar e etc) nada a ver com RPG de mesa, para aplicar em suas teorizações delirantes sobre algo muito mais simples do que fazem parecer em seus textos (pois RPG é coisa séria e você precisa ser super especialista com vários cursos para jogar, não é mesmo? Não, não é. É joguinho de criança que adulto adora romantizar, lide com isso).  Então por essas e outras. "Esse sistema é ruim, esse estilo não é maduro o suficiente para meu perfil super culto de humanas do meu curso online que minha vó pagou. Ou você joga RPG errado porque eu criei esse estilo de jogo e etc.", quando ninguém na sua mesa nunca vai querer pensar ou fazer isso, ou nem tem interesse em jogar assim. Parece uma realidade paralela. E muitas vezes é, da cabeça do teórico de plantão do subreddit mais próximo.




Enquanto isso, na mesa de jogo, os jogadores estão lá negociando com um barão, fugindo de um dragão ou tentando fazer parte de uma seita, causando uma reviravolta nos eventos do mundo de jogo. Com o tempo fica fácil de perceber gente assim. Gente que não joga, mas que adora falar sobre o jogo, só que carecem de experiência e que demonstram isso descaradamente pelos problemas imaginários que juram acontecer em mesa, mas que não fazem o menor sentido para quem de fato joga o jogo. Parece outro universo. E não o do jeito que o  RPG busca criar para a diversão coletiva.

Às vezes até rola um desejo legítimo do gafanhoto, tipo "poxa, queria que tivesse uma classe mais focada na minha criatividade legítima que não me prenda às regras que limitam o meu potencial diferenciado jamais experimentado pela raça humana". Sim, claro, potencial ilimitado. Mas o gafanhoto não percebe que as regras do jogo são para isso, para excitar o seu potencial, mas canalizá-lo no ambiente controlado de jogo, para o caos não tomar conta do jogo, para o mestre não se tornar o foco de arbitrariedade, mas sim o de arbitragem. mas essa percepção precisa vir do buraco real da campanha, da experiência de jogo, com outras pessoas, em situações reais. É diferente de ficar num eterno modo ruminante tentando consertar um jogo que nem foi testado direito ainda.

No AD&D1e, isso é ainda mais verdade. O que tem de gente por aí chorando dizendo que o jogo é arcaico, incoerente, exagerado, bobo, feio e racista, mas que nunca deu conta de ler algo que não foi citado fora de contexto no Reddit.  Sim, claro, RAW (rules as written) é quase uma ficção, porque cada mestre já tem umas 50 interpretações próprias que aplicam dependendo do momento, da mesa, do clima do momento, e do tipo de campanha. Só que ao mesmo tempo, o sistema em si cobre bastante coisa, basta ter a paciência de ler e a humildade de aplicar em mesa antes de chorar que foi tocado no coraçãozinho pelo Gygax sem ter dado a ele permissão . Muita situação que parece aberta demais, na real, já tem alguma lógica subentendida nas regras que se revela jogando. O problema é que quem só especula por via de fragmentos desconexos, não percebe. E quem só lê também, não vê com clareza. É preciso jogar. E esse conjunto de experiência leva tempo. E especialistas de internet não tem tempo. Eles precisam escrever textões, quebrar limite de caracteres do Discord, especulando sobre experiências que não tiveram. 

Ficar preso na teoria também é um jeito de evitar o caos da prática. Evitar contato com outras pessoas, evitar a possibilidade de se estar errado. Ficar preso dentro das teorias de sua própria cabeça e de sua bolha teórica é seguro. Você não tem que improvisar uma resposta ali na hora pro que o ladrão decidiu fazer, mesmo que seu senso moral da vida real não permita isso. Você não chega a ver aquela situação impensável que o ranger do grupo decidiu fazer para que o combate saísse do controle porque você não tem grupo de rpg para deixar isso acontecer em primeiro lugar.

Falar para o espelho te faz perder o coração do hobby. O jogo vive na prática, no improviso, na adaptação pelas faltas da prática, no erro e na tentativa de ajuste constante. Não na simulação mental de perfeição. Não no seu sistema próprio que nunca foi testado mas que você jura que funciona melhor do que o que já vem sendo jogado a décadas. 

Claro, esse texto não é para te tornar um anti-teórico chato. Debater regras pode ser útil, divertido, inspirador e esclarecedor. Só não vai substituir a experiência prática. Muitas dúvidas são esclarecidas jogando, enquanto outras só surgem se você jogar.  Porque muita das vezes que dúvidas surgem, o que parece um problema de sistema é só uma falta de contexto. E muito do que parece uma ideia genial na teoria, se desmonta na primeira sessão prática.

Jogue mais. Se permita errar mais. Deixe os números vacilarem um pouco. Gaste mais seu tempo lendo as regras e jogando o jogo. Daí, só depois, bem depois, vá no Discord/Reddit reclamar que não funciona e dizer que D&D é bobo e feio. Porque se fizer isso antes, quem joga o jogo vai perceber que o bobo e feio é você. 


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