[Megadungeon] Maze of the Blue Medusa
Lá atrás em 2016/2017 quando eu fiquei sabendo da existência do maravilhoso clone de B/X, LotFP, eu também fiquei conhecendo o trabalho de seus mais famosos autores e suas diversas premiações nos ENNIES (que na minha colossal ignorância da época achava que era um prêmio que valia alguma coisa). Com isso fiquei conhecendo seus módulos extra LotFP e o que mais me chamou a atenção foi Maze of the Blue Medusa (MotBM).
MotBM foi lançado em 2016 pelos coautores Patrick Stuart e Zak Smith e aclamada como um marco do gênero: Visual impressionante, cheio de estilo, ousadia estética, um milagre de criatividade. Na época, lembro que foi só elogios, mas depois de ler e rodar a dungeon por algumas sessões, não dá para saber ao certo se essa galera leu mesmo o livro e rodou ou só viu as figuras.
A proposta da dungeon me chamou muito a atenção pela arte ambiciosa, colorida, estética diferenciada, puro suco do Artpunk (que na época nem tinha sido aplicado no contexto de OSR). O livro realmente é maravilhoso visualmente. Capa dura, acabamento de tecido azul com letras prateadas, folhas grossas e espinha costurada. São 296 páginas (com pouco mais de 300 salas. Ou seja, não é bem uma megadungeon no contexto real da palavra) com uma estética ousada que promete facilidade de uso em mesa. Lembro que o marketing se gabava por ser revolucionária e de superar os modelos clássicos . O exemplo anterior de layout revolucionário para megadungeon havia sido conquistado anteriormente por Stonehell e o Zak adorava falar mal de Stonehell, dizendo que era uma dungeon enfadonha. Mas, infelizmente, para ele pelo menos, Stonehell é muito superior em quase todos os sentidos (Mas longe de ser perfeita também).
A premissa de MotBM é curiosa, original e muito bem escrita. Stuart escreve maravilhosamente bem, seus textos são cheios de floreio, bastante criativos e inspiram, mas o que ele faz costuma não ser jogável. Ele é péssimo nessa parte, não entende bem do que se trata D&D o jogo, mas conhece bem a mitologia da fantasia e consegue subverter o gênero sem transformar em farsa (talvez ele tenha melhorado nos últimos anos na parte de entendimento das mecânicas do jogo, mas não acompanho mais seu trabalho.) O Zak também é extremamente criativo, ele consegue também subverter tropos do gênero, cria material muito inspirador seja por imagem ou por texto. Sua arte não é para o gosto de todos, eu pessoalmente gosto, mas como curiosidade, não como mapas e etc, por exemplo. Nesse ponto são injogáveis também.
A trama principal (se é que pode-se chamar disso, já que acaba que é um sandbox) gira em torno de uma civilização antiga que cultuava três mulheres imortais, símbolo de virtude, mas que governavam um império perverso e que distorcia as suas virtudes. Três de seus principais ministros, os poucos que tinham acesso às três deidades, então, conspiraram para tomá-las para si e as aprisionarem em um labirinto construído por Psathyrella, uma das várias medusas especiais do universo do Cubeworld (mundo de fantasia bastante criativo de Zak Smith).
A história da dungeon, em teoria, também é muito interessante. A masmorra foi criada sobre as ruínas de um antigo império reptiliano, em uma ilha no vazio mas que se desprendeu do local e hoje fica no plano negativo. A medusa tomou conta desse lugar e usou como base para armazenar o conteúdo de suas expedições (ela era aventureira), mas além de arquivo, o labirinto também funciona como prisão para várias figuras petrificadas ao longo dos séculos. Psathyrella, seria uma espécie de zeladora trágica do lugar. Também tem uma area reservada para uma galeria de obras de artes, outra é um jardim que cresce desordenadamente, outra é um casamento e etc. A principal entrada para esse local maravilhoso é uma pintura que exige uma espécie de ritual inusitado para ser aberta.
Pela descrição dada, já deu para notar que apesar de ter um tom elevado e artístico, MotBM é uma funhouse dungeon. Ou seja, não busca simular um mundo coerente e realista, mas sim um espaço onírico, como um sonho febril ou um plano alternativo, onde as regras não são as mesmas do mundo real que vai além do clássico. O bizarro predomina. Várias perguntas que colocam em risco a consistência do local surgem, mas no fim a resposta pode ser sempre "é magia, é o plano negativo" e etc. O foco do local não é a verossimilhança. É um lugar de encontros estranhos: Várias criaturas únicas povoam esse lugar, seres extremamente criativos, que fogem do conceito de fantasia clássica e até mesmo S&S, como homens lunares com cabeças brilhantes, felinos de vidro animado, mosaicos que tomam vida, múmias reptilianas enrolada em fitas de papel com conhecimento perdido e liches com coração partido pelo amor não correspondido.
Zak comenta sobre diversas falhas comuns em módulos grandes e diz resolvê-las com MotBM, mas infelizmente falha miseravelmente. A dungeon tenta superar os problemas, que a primeira vista realmente parece ter tido sucesso, mas quando visto a fundo, estão presentes, até mesmo criando novos problemas. O texto, como dito anteriormente, é muito bom e inspirador, mas cai no mal do Artpunk, muito estilo, pouca clareza, e quase nenhuma jogabilidade. A densidade e fluidez da criatividade quase nunca é acompanhada de utilidade em jogo, e o senso de propósito se perde em tanto floreio.
Tudo isso é perceptível quando se tenta mestrar a dungeon. Quando peguei o livro em mãos para ler e quando fui usar em mesa, percebi os vários problemas. A começar pelo mapa.
O mapa é praticamente ilegível em sua forma original (pintura gigantesca feita por Zak, ele é pintor por profissão). É uma pintura impressionante, cheia de salas e detalhes, mas terrível para jogar D&D. É um conjunto de caixas, sem corredores, com uma escala difícil de mensurar, mesmo com régua nas bordas do mapa secundário feito para facilitar a leitura das salas (separando as regiões por cores, todas as salas numeradas). Mas a arquitetura do lugar não permite uma exploração lógica, as salas tem escala no mapa, mas nas descrições são bem maiores, muitas parecendo oceanos a perder de vista, os moradores das salas não interagem entre si no texto e moram literalmente do lado um do outro. E pior, portas são raras na dungeon. Todo o espaço é tomado de conteúdo, não existe espaço para respirar. Há facções, mas elas se misturam para além das divisões das regiões. É uma coisa que fica gritante na prática e é perceptível na leitura se você já é um mestre de dnd oldschool mais rodado.
Outro problema são os tesouros, parece que não há a menor lógica sobre o que vale algo (com valor realmente colocado no texto) e outras coisas que estão ali, parecem ter valor monetário, mas simplesmente não é dado valor. xp por ouro aqui é terra de ninguém. Fica impossível jogar dessa forma sem inventar valores. Tem uma tabela aleatória sobre o que achar nos corpos, mas também é algo super narrativo mas praticamente inútil em jogo (salvo por uma ou outra exceção)
Os monstros também, que loucura. São extremamente criativos, detalhados, muitos com backstory própria, perfeitos para jogos narrativistas. Mas para dnd, caos reina. Como dito anteriormente, não faz sentido essa galera snowflake, super única e especial em sua individualidade, existirem coladas umas nas outras mas sem se matarem, sem contexto adequado vivendo em salas separadas que podem ser gigantes ou ínfimas (sem escala lógica), sem portas, mas estão ali, esperando o grupo chegar. Muitos são extremamente poderosos também. Boa sorte rodando B/X aqui. Foi meu caso. Mais a frente explico como foi.
O texto também, apesar dos esforços, com negritos, itálicos e etc, não é útil em mesa. O texto é belíssimo, mas quando você só precisa saber o que tem na sala e o que o monstro está fazendo, boa sorte, o mestre vai ter que rebolar. Mais uma vez, não me leve a mal, são belíssimos textos, cheios de detalhes, as criaturas e o ambiente ganham vida, são muito criativos, mas isso não vale de nada se o mestre não consegue acessar isso rápido e passar o conteúdo com qualidade para os jogadores. Ler isso antes certamente ajuda, mas pelo tanto de coisa que é e sem saber para aonde os jogadores vão na próxima sessão, acaba que não dá para preparar da forma que seria ideal. Ouso dizer que Arden Vul é melhor nesse quesito. Apesar de ser bem mais densa, ela foi feita para adnd1e, então muita coisa já é fácil de identificar e poupa muito trabalho.
Isso entra na outra questão que comentei acima. Em tese, a dungeon é dnd, mas não é para um dnd específico. Ela usa termos genéricos que em teoria daria para usar até com cof cof, 5e, mas claramente é feita para usar com B/X. Mas não é dungeon clássica, não tem o tesouro adequado, não tem a escala de dificuldade que é esperada em uma masmorra e mil outras coisas. Os monstros são extremamente poderosos e jogados no "mapa" sem muita preocupação com o desafio. Há um padrão não dito em dungeon clássica, mesmo os modernistas em OSR dizendo que o estilo não tem escala de desafio. Como eu sempre comento quando me perguntam dessa dungeon, "É maravilhosa, mas não serve pra dnd clássico".
Eu mestrei essa dungeon para 3 grupos diferentes em períodos diferentes:
O primeiro grupo resistiu por, não lembro bem, mas acho que, por umas 15 a 20 sessões. Digo resistiu porque o layout da dungeon é péssimo para exploração, o grupo morria toda hora, não conseguia sair da dungeon para se recuperar por uma armadilha logo de cara que os prenderam na dungeon. Evitavam de entrar nas salas por medo dos monstros, rodavam em círculos, fugiam, reclamavam das armadilhas que não eram nada claras em seu funcionamento, quase não encontravam tesouros por muitas vezes não ter descrição adequada dos mesmos. Eu não tinha experiência com megadungeons na época e queria mestrar como era de fato apresentada no estilo de jogo que se propunha (OSR) então foi bem frustrante. Mas eu pessoalmente gostei pela originalidade e conteúdo criativo, mas não tinha cacife para avaliar seus defeitos. E o grupo gostava de oldschool, acharam a dungeon criativa mas muito esquisita e não prática. Com o tempo entendi melhor o porque, como descrevi acima.
O segundo grupo durou muito pouco, acho que umas 3 sessões. Foi uma galera mais dispersa em servidor de discord grande, então não insisti. Mas alguns gostaram bem dela, acharam super criativa, intrigante, com NPCS marcantes e queriam jogar mais, tanto que uns 2 vieram para a terceira mesa. Mas quem estava mais animado não tinha experiência com OSR e nem tanto interesse. Gostavam de RPG no sentido popular entre nós, o bom e velho narrativismo.
O terceiro grupo durou umas 5 ou 6 sessões (isso já tem também uns 4 ou 5 anos então pode ter sido menos ou mais, não lembro). Esse grupo tomou um TPK maravilhoso (bem comum no meu histórico dessa dungeon) mas adoraram. Foram em uma direção da dungeon que era muito esquisita, encontraram ambientes mais bizarros do que o comum e criaturas que deram medo neles (um homem lunar, se não me engano) então teve um efeito nesse grupo.
E esse é um ponto que faz essa dungeon ter um lugar especial para mim. Ela pode ser o que é, cheia de defeitos para o jogo de dnd, mas o que as suas salas e monstros podem fazer, é infinito. Mesmo que o todo fique em frangalhos, os momentos específicos podem ser memoráveis. Muita gente diz isso, que os encontros podem ser usados em outros locais, em outros contextos de mesas diferentes, por serem tão sensacionais. Eu não discordo, realmente os encontros são excelentes, mas em conjunto, são terríveis por todos esses motivos que comentei.
No fim, MotBM é um exemplo quase puro do que o Artpunk sempre quis ser, visual marcante, narrativa ousada, cheio de weird fantasy. Pode não parecer, mas eu gosto muito dessa dungeon. Ela é muito criativa, o visual é espetacular, o livro é belíssimo. Não comentei no texto, mas o PDF é cheio de hyperlinks que tentam facilitar sua vida. Mas, infelizmente, para dnd clássico não serve. Ela escancara os limites do estilo a que se propõe (Artpunk e não OSR) sem assumir, quando você de fato tenta jogá-la e não apenas usar o livro de enfeite em mesinha de centro.
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