Hype, Verniz e Promessas vazias: A vida do RPGista colecionador de "novidades".
Já teve uma sensação meio estranha que bate toda vez que aparece um novo financiamento coletivo de RPG “old school” ?. Você se anima todo, mas sente um desgaste de que vai se frustrar mais uma vez?
Mas é irresistível, não é mesmo? A capinha é diferente, o nome soa super descolado, o texto promete uma experiência única e especial para toda a família. |Mas, quando você olha de perto, é o mesmo B/X de sempre (que não chega a ser um clone de qualidade), com texto "autoral" mas com regras ainda mais simplificadas e capadas de sempre, só com uma cara repintada? É como ver o mesmo disco sendo relançado com capa nova, vinil colorido e chamarem de revolução? Isso quando não metem uma bandeira ideológica junto para agregar na cultura e atrair os energéticos militantes de rede social para propagar a marca?
A parte curiosa é que esses projetos costumam fazer sucesso. Arrecadam uma fortuna (varia com o tipo de financiamento e do nome do autor, eu sei), enchem a timeline das redes sociais de hype, e todo mundo fala neles por um mês (curiosamente, o tempo de financiamento). Mas, quando os livros finalmente chegam (muitas vezes anos depois), o entusiasmo todo se evapora. Quase ninguém joga. E quando tentam, reclamam que não fecha mesa porque não é mainstream. São livros que ficam bonitos na estante, mas a energia em volta do material morre rápido, como tinta fresca de má qualidade que seca e começa a descascar, revelando o que sempre esteve ali: mais do mesmo.
Já vi isso várias vezes durante os anos. E pelas redes sociais vejo um ou outro acordando sobre isso. Geralmente é gente de fora da comunidade específica que critica, mas que, para além do fato de não gostarem do sistema ou da comunidade em si, faz críticas razoáveis sobre esse repeteco contínuo. No fim das contas os jogos não inovam, não inovam de uma maneira que incentive a mudança de velhos hábitos, ou sua inovação é tão vazia e gimmick (um truque, recurso chamativo ou detalhe “diferentão” criado pra chamar atenção, mas que raramente tem profundidade real ou impacto duradouro) que a galerinha influenciável que financiou já tá se babando pela próxima "novidade".
Mas o que será que incentiva tantos indivíduos (já vi esse comportamento em vários "autores") a fazerem essas produções que dão até certo trabalho para produzir e divulgar, especialmente na parte estética, mas que nos fundamentos continuam como cópias e cópias derivadas de cargo cult (copiar a superfície do sucesso sem entender o mecanismo por trás dele, como um ritual vazio que tenta reproduzir resultados apenas pelo gesto)? Além do troco fácil, é claro.
Parte desses incentivos podem vir do que dá para chamar de rebrand ideológico. É quando alguém vê o potencial de uma comunidade e pega um sistema já conhecido, muda os nomes, inventa novos termos, e diz que está “reinterpretando” ou “corrigindo” o original. Mas, na prática, o que está sendo feito é uma reorientação de valores. O autor tenta enfiar sua própria visão de mundo dentro de um jogo que já tinha sua identidade bem resolvida. Ele não está só vendendo regras, está vendendo uma ideia, um marca, uma narrativa pessoal travestida de inovação. É uma apropriação simbólica. Ele usa o prestígio de algo estabelecido (como D&D) para legitimar uma agenda própria. Às vezes estética, às vezes ideológica, às vezes puramente de ego. (alguns nem fazem isso pela grana, tem os que fazem isso para ter alguma relevância na comunidade, seja lá qual ganho real isso tenha para o sujeito.)
E não para por aí. Para reforçar esses valores, esse autor faz de tudo para gerar um culto de marca pessoal. Usando de redes sociais, de fama anterior, de bandeiras ideológicas (como citado anteriormente) O criador tenta virar o centro do jogo. A comunidade não se junta porque o sistema é bom, mas porque o autor, seus asseclas (ou contratados para divulgação), são carismáticos, falam bonito (com vocabulário tão rebuscado que você não consegue entender um terço mas que parece ser algo vindo de alguém inteligente e que sabe o que diz), parece ter as respostas. O jogo se torna extensão da personalidade do autor, basicamente uma grife. O valor deixa de estar nas mecânicas ou nos módulos, e passa a estar na assinatura, no “feito por fulano”. O público compra para participar da identidade do criador, não da experiência de jogo. É uma relação de pertencimento e idolatria disfarçada de apoio criativo.
É importante dizer também que isso tudo não acontece apenas com sistemas de RPG, acontece também com material adjacente de jogo para sistemas clássicos ou essas próprias cópias "baratas". No mundo do RPG de mesa também existe filler, ou “enchimento” de catálogo com material vazio. É quando alguém produz qualquer coisa, qualquer lixo mesmo, módulos de aventura que não seguem os fundamentos do sistema de origem para serem jogáveis, monstros genéricos (reskin de monstro clássico com arte nova ou até monstros injogáveis com mecânicas impraticáveis no sistema de origem), suplementos rasos (compre minha zine de 5 páginas com novas roupinhas e items mágicos edgy para deixar sua mesa dark. ), e mudanças de regras mínimas que servem só pra aumentar a quantidade de produtos da marca.
Não importa se ninguém vai jogar aquilo ou se o material tem valor real; o que importa é parecer prolífico, ter um catálogo recheado e manter a comunidade de olho na sua marca. Isso só serve para inflar a percepção de autoridade. Se você tem vinte suplementos, cinco aventuras e um monte de fichas maneiras, todo mundo acha que você entende do assunto e que seu sistema é “robusto”.
Tem também o efeito financeiro, cada pedacinho de material, mesmo raso, pode tirar um trocado. Além disso, ajuda a manter o hype ativo, enquanto o público recebe novidades, mesmo que mínimas, parece que sempre tem algo novo acontecendo.
E tem mais, essa produção de filler serve pra legitimar mudanças estruturais ou gimmicks. Quando um autor lança um monte de material com novas regras, conceitos ou palavras inventadas, a quantidade dá a ilusão de que aquilo foi pensado, testado e desenvolvido com cuidado, mesmo que seja só mais do mesmo, pintado de novidade. No fim, esse tipo de produção não é sobre criar bons jogos, é sobre branding e marketing. Não tem nada de artesanal, comunitário aí. O objetivo é reforçar a marca, o prestígio e a ilusão de inovação, enquanto a essência do jogo continua opaca.
E tudo isso só reforça o charlatanismo de design. Uma enxurrada de “novos” sistemas, suplementos e módulos que são, na real, os mesmos de antes (ou algo ainda mais superficial e inflado) , só que vendidos com discurso de revolução (às vezes literal, que extravasam para as políticas do mundo real). A estrutura é reciclada, as mudanças são superficiais, mas o marketing é "brabo". É o brilho do verniz que esconde o mesmo pau oco de sempre. O jogo promete profundidade e originalidade, mas o que sustenta tudo é a retórica: o discurso de que “agora vai”, de que “essa é a versão mais convidativa e esclarecida do old school”. É um teatro de inovação que vive de ecos retóricos rebuscados e "baixa lá e me dá seu dinheiro".
Então, já viu isso antes? Já viu isso antes na ultima semana? Porque eu vejo isso praticamente todo ano. Tanto que já falei muito sobre isso.
No fim, o consumismo em RPG de mesa, especialmente na OSR, parece cada vez menos sobre jogar e mais sobre colecionar promessas. A comunidade gira em torno de campanhas de financiamento ad infinitum, não de mesas ativas. Cada novo projeto é tratado como um grande evento, mas o ciclo é sempre o mesmo: hype, entrega, esquecimento (claro, sempre há exceções.). O produto muda de roupa, muda de sotaque, muda de logo, mas continua dizendo a mesma coisa. E a gente, que gosta de RPG pelo jogo, fica olhando esse desfile de repetições com uma sensação amarga, como se tivesse lambendo um pirulito de verniz e terminasse com a língua cheia de farpas ideológicas e nenhum doce mecânico para açucarar nosso paladar RPGístico.
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