Em defesa dos retroclones e dos primos dos clones, contra o ataque dos "clownes" e os clones em conflito de identidade.




Me mandaram um meme de um grupo de facebook aleatório outro dia criticando esses sistemas que se dizem inovadores mas que são na verdade o enésimo clone de D&D moderno. A gente não precisa ir muito longe para notar que isso é moda até aqui no Brasil faz bastante tempo. Desde que existe a OGL o pessoal daqui se "inspira" em D&D para fazer seus sistemas. Nada de errado nisso. Não julgo o mérito da época e contexto social em que foram criados ou no gosto geral da população nacional. Mas nada necessariamente bom surgiu também, mas isso já entra em questões subjetivas, gosto pessoal, conhecimento dos sistemas clássicos e etc. 

O ponto aqui é fazer um comentário pessoal (como tudo nesse blog sem referência bibliográfica) sobre essa febre de fazer clone de D&D e em alguns casos porque as pessoas tem vergonha em dizer que seu jogo é só mais uma cópia do que veio antes com retoques de homebrew e o famigerado "sistema próprio". Não tenho a pretensão de fazer um apanhado histórico, isso você pode olhar aqui. O intuito é justamente o de fazer um contexto para expor o que eu observo no hobby hoje. 

Quando a OGL saiu lá nos anos 2000, foi uma febre de produtos terceirizados para a 3e. Se você procurar, vai ver que muita gente se aproveitou disso para fazer suplementos como manual de monstro, items mágicos, magias, equipamentos e até aventuras. A parte de módulos foi a parte mais útil a meu ver, pois gerou um despertar e propagação de criação de grandes designers hobbystas que sabiam o que estavam fazendo e sua experiência ajudou muito a dar exemplos de como módulos poderiam ser feitos sem a aprovação de conteúdo da TSR e posteriormente a WOTC. O mais conhecido, pelo menos por mim, foi o predecessor da Frog God Games, a Necromancer Games, que lançou clássicos como Rappan Athuk e The Slumbering Tsar saga. Eram megamódulos que foram feitos para 3e, mas que em seu DNA pegava muito do Oldschool. Tanto que alguns desses módulos foram adaptados para os retroclones que vieram a seguir, como o S&W. 

A OSR só foi possível graças à OGL. Inicialmente, sistemas que não eram bem D&D mas que também não eram outra coisa, foram produzidos comercialmente, como o Castle & Crusades. Só depois que veio o full retroclone, o OSRIC, ainda assim pisando em ovos e desbravando novo território para não correr o risco de serem obliterados pela área jurídica de uma grande corporação. Eram apenas hobbystas tentando criar um manual para conseguirem produzir módulos (que é o que interessa) baseado no melhor sistema oldschool que há TM (AD&D1e) sem ter que citá-lo em seu texto e apenas colando a página da OGL no final. 

Depois que o OSRIC se "safou", daí começaram a sair novos sistemas copiando mais de perto a fonte original. Há casos de boas adaptações, respeitosas, do sistema de origem, Como Labyrinth Lord pro B/X, Swords&Wizardry  do Finch para o OD&D (que era também autor do OSRIC1e) e até Lamentations of the Flame Princess (que deu uma treta justamente por ser acusado de desviar do jogo, mas as regras são extremamente fieis ao B/X, além de inovar com algumas mecânicas interessantes, mas o core está lá.). Até LotFP, os sistemas eram feitos tentando emular exatamente como era o hobby clássico, buscando replicar a mesma experiência de antes, sem se preocupar com direitos autorais de D&D propriamente dito. Muitos módulos excelentes foram produzidos, coisas até melhores que muitos clássicos. Daí LotFP veio, enfureceu os puristas mas prosperou, produziu muito lixo sim, mas também produziu coisa inovadora, criando uma atmosfera weird e gore em D&D que pouca gente anteriormente ousaria em tocar. 

Considerando outras variáveis extra jogo (dramas do hobby na maior parte) muita gente de fora, seguindo o exemplo de LotFP, veio para o nicho e começou a produzir seu próprio conteúdo. Se afastando cada vez mais da origem, mas se apegando ao D&D clássico pelo menos no conjunto de regras (especialmente o B/X, por ser algo simples de aprender e de adaptar). No inicio foram módulos artísticos usando de forma abstrata as regras do B/X, depois "sistemas" foram criados, "inspirados" no B/X, mas simplificando ainda mais suas regras. E posteriormente nem isso mais. "Sistemas" minimalistas, ousados de até uma página, viraram moda e hoje se tem todo o tipo de derivados de D&D que possa se imaginar. Essa pluralidade é algo positivo, mas se nomeado corretamente para não enganar os desavisados. 

Então, hoje essa explosão continua firme e forte. E infelizmente, a maior parte dessa explosão hoje se dá com clones sem vergonha do B/X. Muitos deles não acrescentam absolutamente nada (para ser justo, tem uns que até acrescentam sim, mas nada autoral. Copiam descaradamente trabalho dos outros, juntam ao que o OSE já fez, chamam de D&D velha escola, lançam livrinho colorido e enganam geral), ou até resumem ainda mais o básico do básico e se dizem sistemas completos. O ultimo retroclone comercial  de verdade de algum D&D que saiu foi o OSE clássico. Esse sim inclusive é o mais fiel de todos. As regras ali são quase que exatamente o que se apresenta, pasme, mais uma vez, no B/X, mas resumidas como um documento seco para ser consultado em mesa. Outros sistemas excelentes foram derivados dessa primeira leva de retroclones, alguns estão até em sua segunda ou terceira edição. Ou seja, há muitos sistemas derivados de D&D que continuam sendo D&D mas com algo a mais que não se afasta de suas origens, mas mesclam bem os pontos altos de sua história. 

Quem vem de fora não entende que esses sistemas (os que realmente tomaram as lições dos clássicos e produziram algo para acrescentar e não simplificar ainda mais com uma mão de tinta colorida para enganar) trouxeram algo positivo para o hobby, pois são versões feitas por designers competentes que sabem o que querem e conhecem seu público. O D&D que eles produzem e vendem, é o que jogaram por décadas, refinaram a partir de seus gostos pessoais e interpretações dos clássicos em regras, práticas de jogo e produziram suas versões completas. São excelentes sistemas, mas continuam sendo D&D.


O olhar raso vindo de fora, de gente que só conhece o D&D moderno ou os "grandes" sistemas nacionais, acabam se confundindo e achando que a qualidade dessas copias fajutas (não todas são péssimas, imagino, mas a maioria é, infelizmente) são similares aos bons sistemas, pois todos continuam sendo D&D. Isso não é verdade. Quando se vai além do que é reconhecível à primeira vista, como os 6 atributos, rolagens de ataque, classes, magias e procedimentos básicos (combate, exploração) percebe-se um refinamento que só alguém com expertise no hobby poderia produzir. São nuances nas mecânicas das classes, descrições das magias, tipos de monstro, descrições dos detalhes, explicação do procedimento e até expansão das regras. Torna o D&D mais D&D, se isso faz algum sentido. 

Eu não estou tentando defender os sistemas que gosto de um meme, inclusive eu entendo e até consigo rir bem dele. Atingiu o seu propósito. O que eu quero colocar aqui é que ele é engraçado a partir de um contexto. 
O que apresentei acima foi a parte em que o meme não tem graça, mostrando os pontos válidos de sistemas íntegros que saíram e ainda saem de D&D. Mas o cerne do meme é mais embaixo. 

O hobbysta, especialmente o brasileiro (mas não só ele), adora entrar no hobby dando cabeçada e já de cara fazer seu sistema próprio "baseado em D&D". O que mais tem em grupos da comunidade é de gente que tá a um ano (ou nem isso) de turista no hobby e já se considera especialista, dando dicas online sobre como fazer uma mesa eficiente, mas nem leram (em sua maioria) e muito menos jogou (em quase sua totalidade) os sistemas que se consideram experts. Daí fazem a sua sopa desconexa e chamam de sistema oldschool.  Isso tudo sem falar nos "gurus" "veteranos" e  "oldschool" que propõem novos "estilos" de jogar "D&D". Esses são tantas aspas que não sei nem se merecem um texto próprio.

O povo do  OSR se safa ainda mais dessas críticas sobre sistemas porque, para o bem ou para o mal, os melhores sistemas desse grupo surgiram de interpretações de hobbystas desconhecidos sobre as regras originais. A diferença lá é que foi de gente que jogava a décadas o jogo, além de terem o bom senso de trocar ideias entre si e saber refletir sobre críticas feitas por outras pessoas experientes.

No Brasil especialmente, a comunidade está tendo mais acesso aos sistemas clássicos agora (com a OSR, que já tem mais de 20 anos, por sinal). O público de D&D aqui, incluindo a geração velha (com exceções, imagino), é de gente que começou na 3e (meu caso) e raramente na 2e, que já eram sistemas com uma cultura de jogo que já estava bastante afastada do modelo clássico. Não é culpa do hobbysta, claro. Oficialmente esses sistemas que foram os primeiros lançados aqui em ptbr (e a caixa preta da grow, que era o basic da linha BECMI). Mas precisamos reconhecer que é uma cultura de mentalidade "moderna" de jogo (para conseguir entender o que era realmente o jogo clássico, tive que fazer isso, reconhecer que jogar sistema velho não necessariamente é jogar o jogo clássico). E claro, o argumento de que "nem todo mundo jogava igual" também vale aqui. Mas, veja bem, por mais que não existia fiscal de regra da TSR em cada lar juvenil, os livros, especialmente os core de AD&D1e, postulavam um jeito próprio de jogar, inclusive dando dicas em quais mecânicas aplicar em qual tipo de campanha.  

Então, a tendência aqui no Brasil, pelo menos pelo que observo nas comunidades, é a de seguir essa linha mais moderna, focada em combates híper-detalhados ou em que o jogo fora do combate é puramente narrativista, sem procedimentos adequados para aplicar o que é o D&D clássico. Não é um público que se preocupa com mecânicas de jogo no geral, com procedimentos de exploração e aplicação consistente das regras como os jogos originais previam. Mais uma vez, nada de errado nisso, cada um joga do jeito que quer, com quem quiser, usando o sistema que quiser, levanto esses pontos apenas para dar um contexto. Daí, os sistemas que aqui aparecem, seguem essa linha de "meu sistema é D&D (confia), é oldschool, mas minha mentalidade é de narrativista moderno" o que infelizmente não cobre o que eles se propõem a cobrir do jogo, por mais que insistam nisso, e ainda enganam quem está interessado no estilo oldschool oferecido nas regras do jogo clássico de jogar D&D. 

A graça do meme está justamente nesses maus exemplos. Nos sistemas ultra minimalistas que saem diariamente, nos supostos jogos que se vendem como inovadores mas que só são interpretações ruins dos clássicos com pintura de jogo moderno. São misturas disformes  de mecânicas antigas com modernas, transformando o jogo em uma massa incongruente de elementos. São sistemas que pegam o core do D&D mas que não tem uma identidade própria, que se dizem oldschool, mas que abraçam o narrativismo storygamer  em uma paixão intensa, mas proibida, que os impedem de reconhecer o que realmente são. Tem também os que são as cópias descaradas do D&D moderno (3e em diante) mas com uma cobertura de anime/dark/(insira a nova moda aqui). Eu não preciso nomear nenhum desses sistemas  aqui, você leitor bem informado certamente já sabe de quais estou falando.

Esses sim que imagino serem o alvo real do meme. E nisso realmente ele é muito engraçado. Mas precisamos colocar os pingos nos i's para saber rir junto, não de forma fragmentada e maluca como esses "clownes" que vemos por aí.  


Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

Você joga RPG errado?

Curadoria do Rato para leituras do Dustdigger (será atualizado com o tempo)

É perder tempo jogar AD&D? (Sim, é. Mas com um twist.)