Meu sistema de estimação é um retroclone como o Anon me disse por aí e isso realmente importa?




Eu provavelmente estarei me repetindo  Mas vem aí mais um post tendo que falar sobre o básico do básico. Vou tentar ser sucinto e didático (e obviamente falhar miseravelmente). Vamos lá. 

Normalmente vejo pessoas rotulando sistemas novos como sendo retroclones disso ou daquilo, inspirados nisso ou naquilo e etc. E geralmente são comparações equivocadas. 

Antes de tudo, para entender o que é um retroclone, é preciso entender o que é D&D e o que define D&D. Então, leia aqui se ainda não leu e depois volte nesse texto para ler o resto. (Claro, mais um lembrete de que tudo nesse blog é opinião. Então, faça uma leitura crítica de tudo e tire o melhor proveito.)

Pronto, já leu? Então podemos continuar.

Quando um jogo ou fanboy recomenda algo como sendo  "inspirado em", "retroclone de", "baseado em", "pegou várias coisas de" ele precisa deixar claro sobre o que está falando, pois quem consome seu produto, ou sua recomendação precisa entender aonde está entrando, pelo menos o que esperar. O que o jogo é preciso ter para ser de inspirado a literalmente o outro jogo mas com outra capa?

Para ser inspirado em, basta só ter arte legal que parece com os livros originais, alguns elementos gerais como classes e raças com o mesmo nome (desde que não infrinja direitos autorais) e apenas isso. Não precisa nem ter mecânicas parecidas. Basta ter a cara e não o coração. 

Para ser baseado em, já é mais complicado. Você precisa ser mais específico, precisa dizer exatamente em qual parte se baseou. Se foi na estética, se foi no feeling do jogo, se foi nas descrições. Não adianta meter um geral de que tentou passar a experiência mas não especificar exatamente em que. 

Já se o jogo se insinua como sendo retroclone de um sistema específico, aí a coisa é mais embaixo. Tem um crivo maior, uma exigência de esclarecimento maior. Logo, precisamos primeiro entender o que é retroclone: 

Os retroclones de D&D são jogos "modernos" (Ou seja, feitos com sensibilidades modernas de layout e linguagem e mais raramente liberdade de mudança de regras) que buscam recriar fielmente as regras e o espírito (E espírito, não OU espírito, veja bem) das edições antigas dos D&Ds clássicos, as primeiras versões de Dungeons & Dragons (OD&D, AD&D, B/X, BECMI). A lógica toda é a de permitir que novas gerações de jogadores possam finalmente vivenciar a experiência de jogo dos anos 70 e 80 sem depender dos livros antigos do jogo ou (como era o propósito inicialmente) infringir direitos autorais. Para isso, esses jogos usavam a Open Game License (OGL), criada para incentivar produções terceirizadas de material core (regras fundamentais que definem e diferenciam a edição) da 3ª edição de D&D, que permitia republicar e adaptar as mecânicas básicas do sistema d20. Atualmente, depois de um drama que partiu da ganância da WOTC, várias editoras pularam fora da OGL e foram para outras licenças abertas sem se submeter aos abusos da megacorporação em questão. Exemplos disso são a AELF do S&W ou a CC (creative commons)

O primeiro retroclone amplamente reconhecido e igualmente divulgado aqui neste blog,  o OSRIC (Old School Reference and Index Compilation),  reconstrói o core do AD&D1e com as diretrizes da OGL,  mudando alguns elementos que supostamente poderiam infringir a licença, e ignorando grande parte das regras extras do jogo, servindo apenas como um “manual legalmente viável” para aventuras compatíveis com AD&D. Depois disso vieram títulos como LL (Labyrinth Lord), que refaz o Basic/Expert D&D de 1981 (a edição Moldvay/Cook), com algumas mudanças em suas extremidades para modernizar e apimentar o jogo (mas ao mesmo tempo mantendo o core do jogo consistente e fidedigno ao B/X), o Basic Fantasy RPG, que também se inspira nesse conjunto de regras, mas adota algumas conveniências modernas da 3e, o descaracterizando como retroclone fiel, por adicionar Classe de Armadura ascendente, bônus de ataque, separar raça de classe, aumentar o limite máximo de classe  e outras coisas mais. Também tivemos o S&W, (Swords & Wizardry), que revisita o OD&D de 1974, oferecendo versões que refletiam diferentes estágios daquela linha, desde a caixa branca original até a versão complete (e atualmente o revised) que adiciona material das expansões do OD&D. Posteriormente tivemos outros sistemas que ousaram inovar mais em suas camadas mais superficiais, mas mantiveram o core do sistema de origem intacto, se permitindo ainda de serem chamados de retroclones, como LotFP e ACKS, só para citar alguns dos mais populares. 

Mais recentemente, com toda a segurança que os desbravadores de outrora arrriscaram e se safatam, veio o OSE (Old-School Essentials) copiando em quase sua totalidade o conteúdo do B/X, com a diferença de ser o mais direto ao ponto possível em sua apresentação do conteúdo, sem textos explicativos longos e com o material autoral da WOTC riscado. OSE serviu tanto para puristas quanto para novos jogadores e inspirou uma geração de preguiçosos e minimalistas a produzirem seu material de utilidade questionável para todos usufruirem, mas não cabe explorar mais isso aqui.

Todos esses jogos citados têm em comum, todos partiram de uma edição clássica de D&D e acrescentaram algo original no meio, sem alterar o core (o fundamental das regras) do material de origem. 

Assim, um retroclone não é apenas uma recriação das regras antigas, mas também uma forma de reapresentar as regras clássicas de uma forma conveniente para uma geração moderna de jogadores, na tentativa de preservar uma forma de jogar D&D que estava em decadência, ressurgiu. entrou em decadência de novo e mais uma vez está ressurgindo, como por exemplo nos estilos de jogo CAG e no BroSR, por exemplo.  

Mas, veja bem, quem se inspira em D&D antigo não está automaticamente produzindo um retroclone. Para ser considerado um retroclone e especificamente o de uma determinada edição , suas regras precisam seguir os elementos essenciais que definem aquela edição. Dizer que um sistema é retroclone de AD&D1e só por separar raça de classe, pegar nomes de classes igual, se inspirar em algumas mecânicas mas alterando elas completamente, é tolice sem tamanho. Dizer que seu sistema é baseado em OD&D, ao mesmo tempo que usa todos os elementos do B/X e praticamente nada de OD&D, é tolice igualmente sem tamanho. Assim você queima seu filme e só engana usuário que não conhece D&D. Qualquer um que gastou algumas horas lendo o essencial dos sistemas de origem, vai entender que seu clone de B/X não é nada mais do que isso, um hack de B/X. E sua máscara cai. 

Como eu já comentei anteriormente em outros textos, eu gosto do B/X, mas para jogar jogos mais simples, mais rápidos. Quando vejo alguém fazendo propaganda de sistemas que separam raça de classe dizendo que se trata de um clone de AD&D1e, eu rio alto. Se for assim, 3e, 4e, 5e, todos são clones de AD&D. Para ser um clone de AD&D, é preciso seguir a mesma linha de regras básicas do sistema. é preciso ter uma progressão de level similar, é preciso ter raças com diferenciações mecânicas feitas no mesmo molde, é preciso que essas raças modifiquem certas características das classes, é preciso ter um sistema robusto de magia e items mágicos que cubram essas dinâmicas, é preciso ter um sistema de combate, exploração que cubra o essencial da mesma maneira que o AD&D1e cobre. Isso é só para citar o exemplo de um sistema. Essa lógica serve para todos. Se seu sistema cobre apenas raça separado de classe mas ignora todos os outros elementos e segue as mesmas tabelas que tem no B/X e o combate é simplificado igual o B/X e rolam-se os mesmos dados para todo o resto igual B/X faz, sinto muito, seu jogo é clone de B/X. 

Você pode ter um jogo completo, detalhado baseado em B/X, não precisa se envergonhar. Veja só o que o ACKS fez, por exemplo (apesar do autor muitas vezes dizer que se baseou muito no BECMI, mas o BE ainda sim é bem similar ao B/X). ACKS pegou o core do Basic e expandiu de forma gloriosa, levando o jogo a alturas jamais anteriormente imagináveis (inclusive de ser questionado se é realmente um retroclone ou OSR adjacente. Ainda acho que seja retroclone). É um jogo ainda mais complexo que AD&D1e (em alguns pontos, até mais completo), mas o autor não espalha por aí que seu jogo é AD&D, porque simplesmente não é. O core dele é basic, ele só expandiu daí. 

Então, esse texto enorme (mesmo eu dizendo que seria sucinto, perdão), cheio de bobagem ainda te deixa confuso sobre como identificar um golpe quando ver? Então, siga esses passos simples quando ver uma afirmação pela internet de que sistema Y é retroclone de D&D Clássico X: 

  1. |Primeiramente, abra prefácio/introdução ou descrição do produto: se o autor diz que é retroclone, não confie cegamente, apenas seja mais crítico a partir daí;

  2. Vá até o final do livro e verifique as licenças. Muitos retroclones usavam a OGL ou citam o SRD antigo. A presença da OGL e quais sistemas estão citados antes do livro em questão são indícios de qual edição eles foram baseados.  

  3. Leia o prefácio: Se o que foi dito lá for algo específico sobre autores clássicos, mecânicas clássicas, há boas chances do autor ao menos conhecer as referências originais. Se for comentários vazios como "preservar o estilo de jogo" "inspirados na forma clássica" e etc, sem especificar melhor o que isso quer dizer, desconfie. 

  4. Analise as mecânicas principais que tem em sistemas clássicos (Eu sei, iniciante pena nisso, mas faça um esforço): Procure como funciona as mecânicas de classe e raça, não apenas serem separadas ou juntas, mas também como uma afeta o outra, se é coerente com o original e etc. Avalie como funciona o  sistema de combate, a iniciativa (há segmentos? Fases?) de movimento, de ataque/to-hit, CA/armadura, magias (vancianas? por dia? até que nível elas vão? O que a descrição da magia cobre? Monstros tem resistência mágica? ), progressão de níveis (seguem o padrão de qual sistema clássico? Qual o nível máximo? A classe interfere nisso?), as salvaguardas (é uma, três, cinco? Como é a progressão de salvaguarda por nível?).

  5. Sinais técnicos e como são apresentados também podem ser um sinal de qual edição ela está querendo representar. Termos como THAC0, Matrizes de ataque, categorias de salvaguarda (lista curta como paralyze/poison, rod/wand/staff, petrify/breath, dragon breath, spells) ou XP por tesouro indicam forte filiação a edições antigas (AD&D/Basic). Mas talvez não sejam o suficiente para difereniar essas duas edições

  6. Verifique a compatiblidade com módulos antigos. Mas não somente nos títulos. No corpo do texto costuma aparece indícios sobre qual edição o módulo foi feito para. Testes para alguma armadilha, descrição e tabela dos monstros, classes de NPCs, magias, novas e antigas, itens mágicos. Procure notas que explicitem esses detalhes. Se seu sistema não fornece recurso técnico para se usufruir do conteúdo apresentado no módulo, muito provavelmente seu sistema não é retroclone daquele sistema. 

  7. Tente converter o monstro do sistema de origem para o seu.  Pega uma criatura clássica (goblin, ogro) de um módulo antigo e tente adaptar: HP, AC, ataque, dano, magias. Se a conversão for trivial (1–2 valores mudam), o sistema é compatível/retro. Se exigir reescrever statblock inteiro ou boa parte, repensar XP, é furada. A mesma lógica serve para items mágicos e magia. 


Essas são só formas básicas de tentar verificar se o sistema que você comprou é retroclone, se é só inspirado ou se é literalmente golpe. Mas a melhor foma mesmo de descobrir é jogando sistemas e módulos. Quando notar o estranhamento de jogar B/X em um módulo feito para AD&D e vice versa, você vai entender muito melhor o que tentei dizer nesse texto. 

Esse é um tema complexo e não muito fácil de delinear, porque as pessoas geralmente não conhecem bem o que são mecânicas fundamentais de um sistema que proporcionam um tipo de jogo com suas ramificações mais superficiais em qua suas mudanças não interferem na prática de jogo como um todo. Tentar adicionar algo moderno nas extremidades do jogo não necessariamente vai destruir a experiência, a exemplo da mecânica de quebrar escudo ou até as perícias em d6 do especialistas famosas em LotFP e copiadas desde então. O core é o mesmo, as mecânicas novas são fundamentadas nesse core, não desviam o propósito e o jogo continua sendo retroclone. 

"Isso tudo quer dizer que o sistema que eu jogo e achava que era praticamente AD&D1e mas que na verdade é um hack de B/X é um lixo e eu deveria voltar a jogar hack de 3e versão anime por causa disso?" Não, de maneira nenhuma. 

Seu sistema de estimação pode continuar sendo super divertido e te oferecer tudo o que você quer ter nesse nicho do nicho que é ter a sensação de jogar um jogo oldschool. Não deixe um texto random de blog atrapalhar a sua diversão. Considere esse texto apenas como uma orientação sobre como se identificar no amplo espectro do OSR e aonde você e seu sistema favorito se encaixa nele. Te ajudará a encontrar mais fácil o que procura de agora em diante. E de saber identificar lorota quando ouvir uma. 

E mais uma vez, nada te impede de jogar o que quiser, da forma que quiser, afirmando o que quiser. Só entenda que a realidade do mundo não se limita ao que acontece dentro da sua própria cabeça e existe um padrão aceitável para a definição das coisas para o diálogo ser possível. Se seu sistema minimalista de 3 atributos e salvaguarda baseado na verossimilhança do café descafeinado do mestre  te satisfaz e te faz se sentir oldschool, fico feliz por você.  No mais, bons jogos (no fakeclone ou no retroclone que curtir mais jogar.)




 

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

Curadoria do Rato para leituras do Dustdigger (será atualizado com o tempo)

Você joga RPG errado?

É perder tempo jogar AD&D? (Sim, é. Mas com um twist.)